Havia sangue, muito sangue, no lugar onde nasci. Tudo em volta era silêncio e não haviam estrelas no céu e não havia sinais de eclipse e não havia arco-íris e o chão carregava sinais de ferrugem. Nada recorda a data exata e pouco se pode dizer dos pássaros agourentos que foram as únicas testemunhas daqueles pequenos incêndios, ruídos e estremecimentos que se produziram quando escorreguei pelo interior do corpo de minha mãe e pousei nesta terra como um escaravelho esverdeado. Os pistoleiros subiram o vale em seus cavalos. Os ciganos dançaram à sombra das oiticicas. O velho carrancudo sorriu quando quase chorei. De aí em diante tudo seria ainda pior. Assassinatos, suicídios, ditaduras, exílios e, principalmente, silêncios. Até que um dia minha língua se dobrou sobre o corpo sem esperança de Tempo e tocou novamente o sangue. Entre névoa e couraça. Entre nuvens de mentiras e copos estilhaçados. Entre abandonos e objetos encravados à pele. Apenas o sangue e os pássaros por testemunha. Apenas o silêncio e a violência desesperada dos místicos. Apenas a palavra fervendo e os suspiros dos seres de barro. Apenas o medo, este estrangeiro que respira dentro e que ameaça com seu olhar de soslaio desmoronar as últimas ruínas. Havia sangue, muito sangue, no lugar onde nasci. O resto não devo contar - por respeito à faca que atravessa como um raio desgarrado o coração assustado de Judite.
nuno g.
Lima, 09 de agosto de 2025.