para Roberto Bolaño,
Vejo os operários, vejo as ruínas, vejo a cidade se desdobrando
em outra cidade que também está repleta de operários e ruínas
se desdobrando em outra cidade
Ouço o som da luz e entendo que nada mais é
que o Sol vociferando
Ouço os sussurros dos demônios arcaicos
e vejo o brilho das estrelas que ardem em seus olhos
Trago no corpo a gordura das frituras do mundo
a fumaça de todos os cigarros do mundo
enquanto minha boca saboreia creme de avelã
Vejo a Serpente rasgando o céu
e fico parado, simultaneamente, estático e em movimento,
como uma árvore solitária que cresce em direção ao centro da terra
em direção ao vulcão-abóbada-do-infinito
parado, imóvel, em incessante movimento
como uma palavra desgarrada do curso natural do tempo
que se dobra sobre si mesma
em busca do seu próprio útero
e do perfume de uma rara flor que lhe marcou a primeira primavera
Uma senhora bendiz e reza os pés de Assucena
Um homem gordo se arrasta sobre o asfalto como uma lesma no pântano
Ainda é maio, ainda tem suficiente querosene em minhas veias
Ouço o acordeão primitivo e insolente
e adentro a geografia desconhecida das promessas de futuro
enquanto vou desenrolando um fio de azeite e algo de borra de café
São anos de jejum pairando sobre minha cabeça
Orbitando entre minhas virilhas
Parindo máquinas insones que não param de se reproduzir
Ainda é maio, meu avô me presenteia uma lua cheia
adentro suas cavernas e pouco-a-pouco
vou construindo um caminho até seu lado insondável
Agarro-me a São Miguel como se a floresta das mil pétalas enfeitiçadas
estivesse logo ali, à terceira margem do rio
Ouço os transeuntes balbuciando intempéries
Tudo está suficientemente distante
Tudo parece irremediavelmente ausente
Os operários, as ruínas, a cidade grávida de outra cidade
também grávida
e prestes a se dissolver num parto extenuante e cheio de brilho
Ainda é maio: finalmente a lua se permitiu ser vista
entre nuvens que, ironicamente,
não se assemelhavam em nada às nuvens que me acompanharam por toda a vida
Ouço o som das máquinas se reproduzindo como cães indefesos
ou como ratos caseiros que serão devorados na próxima estação
Agarro-me à penumbra e à esperança que morde minhas cicatrizes e vocifera
Os arcanjos de maio bailam uma ciranda bonita
Minhas turvas visões conferem imprecisão às fronteiras do mundo
O fogo me acaricia o corpo, ouço os passos de Alice caminhando de regresso
e recordo, por um instante, o exato momento em que abandonei a jarra de cinzas
Ainda é maio: a fé é o que resta do tempo em que vivemos no útero
Ainda é maio: meu avô está de sentinela na entrada da cidade
Ainda é maio: me despeço, adormeço e ouço a palavra desgarrada
A palavra que inverte o sentido da história
A palavra que não serve aos planos dos políticos sobre a vida
A palavra que não é arma e que se ajusta com precisão às cicatrizes
Nada importa mais em um corpo que as cicatrizes:
o Além é a cicatriz mais profunda
nele a pele sonha um imaginário inabitável e acolhedor
onde pássaros coloridos entoam salmos de louvor ao impronunciável
Ouço o Sol vociferando
Vejo o brilho das estrelas
E toco com a língua o escarnecido feitiço que assombra os lunáticos...
nuno g.
Lima, 15 de maio de 2025.
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