quinta-feira, 15 de maio de 2025

Oração à Nossa Senhora das Nuvens

para Roberto Bolaño,


Vejo os operários, vejo as ruínas, vejo a cidade se desdobrando

em outra cidade que também está repleta de operários e ruínas

se desdobrando em outra cidade

Ouço o som da luz e entendo que nada mais é

que o Sol vociferando

Ouço os sussurros dos demônios arcaicos

e vejo o brilho das estrelas que ardem em seus olhos

Trago no corpo a gordura das frituras do mundo

                         a fumaça de todos os cigarros do mundo

enquanto minha boca saboreia creme de avelã

Vejo a Serpente rasgando o céu

e fico parado, simultaneamente, estático e em movimento,

como uma árvore solitária que cresce em direção ao centro da terra

                                                             em direção ao vulcão-abóbada-do-infinito

parado, imóvel, em incessante movimento

como uma palavra desgarrada do curso natural do tempo

que se dobra sobre si mesma

em busca do seu próprio útero

e do perfume de uma rara flor que lhe marcou a primeira primavera

Uma senhora bendiz e reza os pés de Assucena

Um homem gordo se arrasta sobre o asfalto como uma lesma no pântano

Ainda é maio, ainda tem suficiente querosene em minhas veias

Ouço o acordeão primitivo e insolente

e adentro a geografia desconhecida das promessas de futuro

enquanto vou desenrolando um fio de azeite e algo de borra de café

São anos de jejum pairando sobre minha cabeça

Orbitando entre minhas virilhas

Parindo máquinas insones que não param de se reproduzir

Ainda é maio, meu avô me presenteia uma lua cheia

adentro suas cavernas e pouco-a-pouco

vou construindo um caminho até seu lado insondável

Agarro-me a São Miguel como se a floresta das mil pétalas enfeitiçadas

estivesse logo ali, à terceira margem do rio

Ouço os transeuntes balbuciando intempéries

Tudo está suficientemente distante

Tudo parece irremediavelmente ausente

Os operários, as ruínas, a cidade grávida de outra cidade

também grávida

e prestes a se dissolver num parto extenuante e cheio de brilho

Ainda é maio: finalmente a lua se permitiu ser vista

entre nuvens que, ironicamente,

não se assemelhavam em nada às nuvens que me acompanharam por toda a vida

Ouço o som das máquinas se reproduzindo como cães indefesos

ou como ratos caseiros que serão devorados na próxima estação

Agarro-me à penumbra e à esperança que morde minhas cicatrizes e vocifera

Os arcanjos de maio bailam uma ciranda bonita

Minhas turvas visões conferem imprecisão às fronteiras do mundo

O fogo me acaricia o corpo, ouço os passos de Alice caminhando de regresso

e recordo, por um instante, o exato momento em que abandonei a jarra de cinzas

Ainda é maio: a fé é o que resta do tempo em que vivemos no útero

Ainda é maio: meu avô está de sentinela na entrada da cidade

Ainda é maio: me despeço, adormeço e ouço a palavra desgarrada

A palavra que inverte o sentido da história

A palavra que não serve aos planos dos políticos sobre a vida

A palavra que não é arma e que se ajusta com precisão às cicatrizes

Nada importa mais em um corpo que as cicatrizes:

o Além é a cicatriz mais profunda

nele a pele sonha um imaginário inabitável e acolhedor

onde pássaros coloridos entoam salmos de louvor ao impronunciável

Ouço o Sol vociferando

Vejo o brilho das estrelas

E toco com a língua o escarnecido feitiço que assombra os lunáticos...


nuno g.

Lima, 15 de maio de 2025.

Nenhum comentário:

Postar um comentário