O dia amanhece, as pessoas saem a passear seus cães pelas ruas.
O dia amanhece, as crianças saem com seus pais à escola.
O dia amanhece, os vendedores preparam lanches e bebidas nas esquinas do bairro.
O dia amanhece, inesperadamente, se vê o sol e se escutam sorrisos às ruas.
O dia amanhece, as memórias do sonho vão se desfazendo velozmente.
O dia amanhece, abandono o castelo e regresso ao apartamento.
O dia amanhece, o aroma de café se sobrepõe aos aromas do castelo.
O dia amanhece, uma teia de pétalas de flores coloridas acende a cidade.
O dia amanhece e algo amanhece junto.
Uma vez mais caminho por províncias antigas.
Ouço o som do mar Pacífico.
Sinto sua umidade entranhando-se em meus ossos.
Avisto a meseta central do grande vale de Anáhuac.
Avisto o monte Roraima, sua exuberância me comove.
Pressinto a proximidade do lago sagrado e seus sapos gigantes.
Olho as pessoas na parada de ônibus devorando pão com abacate.
Vejo os operários chegando para mais um dia de trabalho.
Recordo a imensidão da noite que me abandona.
Recordo sonhos antigos em cárceres ainda mais antigas.
Ouço a voz dos prisioneiros disputando cigarros e comida.
Avisto a chapada do Apodi com seus jaguares encantados.
Ouço seus cantos, sinto seu vento, banho-me em seu rio.
Aracati me sussurra coisas que não devo esquecer.
Aracati me sussurra coisas que não posso narrar.
Não está frio, mas a memória do frio está mais presente que ontem.
Raízes se entrelaçam à minha desesperança.
O castelo vai ficando para trás.
As coisas que não me aconteceram vão ganhando formas precisas.
Ouço um velho amigo me falando sobre o medo e a ansiedade.
Alice desperta, come um pão com ovo e vai fazer prova de biologia.
Assucena desperta, come morango com uvas e sorri.
Larissa desperta, nela a luz da lua e o fogo de antigas promessas.
O castelo estava vazio, nele nem sinal de quem eu buscava.
Ainda assim creio nas coisas que não vivi quando nele estive.
Sigo outra vez a Serpente e as asas da Serpente e o veneno da Serpente.
Ainda estou no deserto - mas agora entendo que estar nele é estar calmo.
Como quando escrevi meu próprio dicionário.
E redescobri o segredo dos heróis e das tumbas.
E pude reviver toda minha vida representada no anfiteatro do castelo.
Relembro o sono profundo que me acometeu nos pampas de Ayacucho.
Passaram-se apenas duas décadas, mas parece que se passaram mil séculos.
Ainda ouço a voz sublime de Martina Portocarrero cantando à praça.
Ainda vejo as pessoas bebendo, dançando, conversando e namorando.
O feitiço daquele dia ainda está em mim.
Como a memória de um desejo espraiando-se sobre o horizonte.
Como as loucas sensações que se apoderaram de mim quando li Ginsberg por primeira vez.
Como a certeza de que no castelo habita apenas a sombra de quem eu buscava.
E que, ainda assim, essa simples presença fantasmagórica foi suficiente.
nuno g.
Lima, 16 de maio de 2025.
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