sexta-feira, 16 de maio de 2025

O castelo Rospigliosi

O dia amanhece, as pessoas saem a passear seus cães pelas ruas.

O dia amanhece, as crianças saem com seus pais à escola.

O dia amanhece, os vendedores preparam lanches e bebidas nas esquinas do bairro.

O dia amanhece, inesperadamente, se vê o sol e se escutam sorrisos às ruas.

O dia amanhece, as memórias do sonho vão se desfazendo velozmente.

O dia amanhece, abandono o castelo e regresso ao apartamento.

O dia amanhece, o aroma de café se sobrepõe aos aromas do castelo.

O dia amanhece, uma teia de pétalas de flores coloridas acende a cidade.

O dia amanhece e algo amanhece junto.

Uma vez mais caminho por províncias antigas.

Ouço o som do mar Pacífico.

Sinto sua umidade entranhando-se em meus ossos.

Avisto a meseta central do grande vale de Anáhuac.

Avisto o monte Roraima, sua exuberância me comove.

Pressinto a proximidade do lago sagrado e seus sapos gigantes.

Olho as pessoas na parada de ônibus devorando pão com abacate.

Vejo os operários chegando para mais um dia de trabalho.

Recordo a imensidão da noite que me abandona.

Recordo sonhos antigos em cárceres ainda mais antigas.

Ouço a voz dos prisioneiros disputando cigarros e comida.

Avisto a chapada do Apodi com seus jaguares encantados.

Ouço seus cantos, sinto seu vento, banho-me em seu rio.

Aracati me sussurra coisas que não devo esquecer.

Aracati me sussurra coisas que não posso narrar.

Não está frio, mas a memória do frio está mais presente que ontem.

Raízes se entrelaçam à minha desesperança.

O castelo vai ficando para trás.

As coisas que não me aconteceram vão ganhando formas precisas.

Ouço um velho amigo me falando sobre o medo e a ansiedade.

Alice desperta, come um pão com ovo e vai fazer prova de biologia.

Assucena desperta, come morango com uvas e sorri.

Larissa desperta, nela a luz da lua e o fogo de antigas promessas.

O castelo estava vazio, nele nem sinal de quem eu buscava.

Ainda assim creio nas coisas que não vivi quando nele estive.

Sigo outra vez a Serpente e as asas da Serpente e o veneno da Serpente.

Ainda estou no deserto - mas agora entendo que estar nele é estar calmo.

Como quando escrevi meu próprio dicionário.

E redescobri o segredo dos heróis e das tumbas.

E pude reviver toda minha vida representada no anfiteatro do castelo.

Relembro o sono profundo que me acometeu nos pampas de Ayacucho.

Passaram-se apenas duas décadas, mas parece que se passaram mil séculos.

Ainda ouço a voz sublime de Martina Portocarrero cantando à praça.

Ainda vejo as pessoas bebendo, dançando, conversando e namorando.

O feitiço daquele dia ainda está em mim.

Como a memória de um desejo espraiando-se sobre o horizonte.

Como as loucas sensações que se apoderaram de mim quando li Ginsberg por primeira vez.

Como a certeza de que no castelo habita apenas a sombra de quem eu buscava.

E que, ainda assim, essa simples presença fantasmagórica foi suficiente.


nuno g.

Lima, 16 de maio de 2025.


Nenhum comentário:

Postar um comentário