sábado, 31 de maio de 2025

ossos em carne viva

         para Larissa, Alice & Assucena,


Deixo para trás a casa do Amauta como quem abandona um templo.

Levo comigo o precioso instante em que meu olhar pousou nas teclas de sua burroughs.

Caminho até o mercado das bruxas.

Em silêncio e com passos leves para não incomodar a insônia que povoa a cidade.

Levo comigo uma mochila cheia de esterco e sonhos.

Penso sobre o ressentimento que move os transeuntes.

Em sua desesperada busca por mais dinheiro e reconhecimento.

O excesso de café e a atmosfera de efeméride provocam abalos sísmicos em meus órgãos digestivos.

Olho as bancas de feitiços, as folhas de coca para rituais de adivinhação.

Sinto o cheiro doce do copal e a umidade afogando minhas mais antigas ruminações.

Estranhos objetos atravessam meu corpo como os projéteis bélicos atravessam as ruas de Gaza.

A cidade se estende ante meus olhos como a relva onde amanhece meu rosto anterior ao nascimento.

Tudo nela desconheço, como em meu corpo.

Território inviolável e abstrato onde se insinuam seres grávidos de suspeita.

Sinto a presença do Amauta abençoando nossos passos na escuridão.

Avisto estilhaços de minha alma cruzando as esquinas.

Vejo línguas estendidas em direção aos semáforos.

A cidade toda convertida em um imenso canteiro de obras.

Jardins sendo demolidos, árvores substituídas por edifícios.

E essa umidade ímpar penetrando os ossos e a intimidade dos mais recônditos pensamentos.

A barbárie moderna é imparável, incansável e desconhece o perdão.

Alice desperta e diz: vem pai!

Alice desperta e lê: canteiro de obras!

Em seus olhinhos sonolentos e delicados revejo as teclas da burroughs do Amauta.

E o mercado das feiticeiras andinas.

E a sua dúvida: isso já seria uma anáfora, pai?

Sim, as anáforas habitam meus poemas como duendes e gnomos habitam as florestas.

Também gosto de anáforas pai!

O sol luta contra as nuvens e um fantasma repete:

não há mar, não há eclipse, não há arco-íris.

A barbárie moderna insiste em mudar de trajes.

Se apresenta como uma respeitável senhora de classe média.

Que não guarda nenhum pudor em exibir seus miseráveis preconceitos.

Regressamos à floresta guiados pelos fantasmas do fogo.

Uma imensa cruz de caravaca surge no horizonte.

Pai, este poema está se movendo muito, do concreto à floresta!

Pai, no Brasil também o gentilício de chinês pode ser chino?

Pai, será que os estadunidenses falam unitedstatesense?

Assucena dorme sob efeito da injeção que lhe aplicaram no hospital Santa Rosa.

Larissa dorme e Alice me lembra que temos que comprar uma bolsinha de emergência.

A vizinha empesta o hall do quinto andar com cheiro de peixe frito.

A vizinha empesta a cidade com peixe frito.

Vou à padaria.

Passos leves para não incomodar a insônia de Tempo.

A senhora venezuelana vende tamales e amaldiçoa Maduro.

Darian brinca que somos noruegueses.

Pai, em espanhol o acento circunflexo não tem nome!

Neste instante um avião sobrevoa o Darién panamenho

                                       sobrevoa os ossos dos invasores ibéricos

                                       sobrevoa o zumbido infernal dos mosquitos da selva

                                       sobrevoa as estrofes dos poemas ainda não escritos

Um jovem, arrogante e sincero, entra na padaria com um cão à coleira.

Caminho até a igreja Santa Beatriz.

Onde rezo pelos mortos que seguem vivos.

Pai, você não usa linguagem neutra nunca né?

Pai, esse poema poderia se chamar figuras de linguagem!

Pai, você vai expor isso?

Pai, o povo vai achar que eu sou contra!

Yes!

Volto à casa do Amauta.

Perdemos todas as fotos que tiramos lá.

Deixo os sapatos à entrada.

Peço ao sábio alguma sabedoria.

O sol quase vence as cinzas do ressentimento e da vingança.

Um homem com ares de filólogo pede um ovo com chorizo.

Assucena sonha com o labirinto de corredores do hospital Santa Rosa.

Larissa sonha com a grosseira da enfermeira aplicando a injeção.

Alice, já desperta, segue sonhando com coelhos alegrinos.

E sopra: pai, alguém pode sonhar com coelhos alegrinos?

E sopra outra vez: esse poema poderia encerrar com um emoji, pai!

💗


nuno g.

Lima, 31 de maio de 2025.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Conjuração dos fantasmas de 31 de maio

Chegaram das quatro regiões oníricas

Em profunda algazarra

O bando dos mares trouxe vinho em abundância

O das montanhas ervas e amuletos indecifráveis

Os filhos da terra do fogo trouxeram pequenos insetos fosforescentes

E os seres subterrâneos trouxeram sândalo, copal e grãos de areia

Reuniram-se à imensa mesa

E cantaram cânticos em línguas desconhecidas

Impronunciáveis fonéticas ecoaram em torno à mesa

Estrondos se escutaram e relâmpagos foram avistados

E o tempo se fez estático como quando nasce uma criança

Ou como quando morre uma criança

Ou como quando se enterra uma criança

Ou como quando se encerra o luto de uma criança

Ou como quando a crença gera uma trégua

Mas os fantasmas sabem que as crenças apenas insinuam tréguas

E que o luto de uma criança move um mundo

E que enterrar uma criança implica num tipo muito particular de tristeza e esgotamento

E que a morte de uma criança corrobora que o sentido do mundo é reversível

E que o parto de uma criança é a própria definição de milagre

Os fantasmas trouxeram para os meus sonhos objetos alheios ao meu desejo

E os dispuseram à mesa à revelia de minha vontade

Em estado de alegria e algazarra

Comeram, beberam e cantaram

Entoaram cânticos numa língua esquisita

De impronunciável fonética e ritmo frenético

Os primeiros raios de sol tomaram a reunião de assalto

E tudo o que conhecíamos por realidade deixou, subitamente, de existir


nuno g.

Lima, 29 de maio de 2025.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

O castelo Rospigliosi

O dia amanhece, as pessoas saem a passear seus cães pelas ruas.

O dia amanhece, as crianças saem com seus pais à escola.

O dia amanhece, os vendedores preparam lanches e bebidas nas esquinas do bairro.

O dia amanhece, inesperadamente, se vê o sol e se escutam sorrisos às ruas.

O dia amanhece, as memórias do sonho vão se desfazendo velozmente.

O dia amanhece, abandono o castelo e regresso ao apartamento.

O dia amanhece, o aroma de café se sobrepõe aos aromas do castelo.

O dia amanhece, uma teia de pétalas de flores coloridas acende a cidade.

O dia amanhece e algo amanhece junto.

Uma vez mais caminho por províncias antigas.

Ouço o som do mar Pacífico.

Sinto sua umidade entranhando-se em meus ossos.

Avisto a meseta central do grande vale de Anáhuac.

Avisto o monte Roraima, sua exuberância me comove.

Pressinto a proximidade do lago sagrado e seus sapos gigantes.

Olho as pessoas na parada de ônibus devorando pão com abacate.

Vejo os operários chegando para mais um dia de trabalho.

Recordo a imensidão da noite que me abandona.

Recordo sonhos antigos em cárceres ainda mais antigas.

Ouço a voz dos prisioneiros disputando cigarros e comida.

Avisto a chapada do Apodi com seus jaguares encantados.

Ouço seus cantos, sinto seu vento, banho-me em seu rio.

Aracati me sussurra coisas que não devo esquecer.

Aracati me sussurra coisas que não posso narrar.

Não está frio, mas a memória do frio está mais presente que ontem.

Raízes se entrelaçam à minha desesperança.

O castelo vai ficando para trás.

As coisas que não me aconteceram vão ganhando formas precisas.

Ouço um velho amigo me falando sobre o medo e a ansiedade.

Alice desperta, come um pão com ovo e vai fazer prova de biologia.

Assucena desperta, come morango com uvas e sorri.

Larissa desperta, nela a luz da lua e o fogo de antigas promessas.

O castelo estava vazio, nele nem sinal de quem eu buscava.

Ainda assim creio nas coisas que não vivi quando nele estive.

Sigo outra vez a Serpente e as asas da Serpente e o veneno da Serpente.

Ainda estou no deserto - mas agora entendo que estar nele é estar calmo.

Como quando escrevi meu próprio dicionário.

E redescobri o segredo dos heróis e das tumbas.

E pude reviver toda minha vida representada no anfiteatro do castelo.

Relembro o sono profundo que me acometeu nos pampas de Ayacucho.

Passaram-se apenas duas décadas, mas parece que se passaram mil séculos.

Ainda ouço a voz sublime de Martina Portocarrero cantando à praça.

Ainda vejo as pessoas bebendo, dançando, conversando e namorando.

O feitiço daquele dia ainda está em mim.

Como a memória de um desejo espraiando-se sobre o horizonte.

Como as loucas sensações que se apoderaram de mim quando li Ginsberg por primeira vez.

Como a certeza de que no castelo habita apenas a sombra de quem eu buscava.

E que, ainda assim, essa simples presença fantasmagórica foi suficiente.


nuno g.

Lima, 16 de maio de 2025.


quinta-feira, 15 de maio de 2025

Oração à Nossa Senhora das Nuvens

para Roberto Bolaño,


Vejo os operários, vejo as ruínas, vejo a cidade se desdobrando

em outra cidade que também está repleta de operários e ruínas

se desdobrando em outra cidade

Ouço o som da luz e entendo que nada mais é

que o Sol vociferando

Ouço os sussurros dos demônios arcaicos

e vejo o brilho das estrelas que ardem em seus olhos

Trago no corpo a gordura das frituras do mundo

                         a fumaça de todos os cigarros do mundo

enquanto minha boca saboreia creme de avelã

Vejo a Serpente rasgando o céu

e fico parado, simultaneamente, estático e em movimento,

como uma árvore solitária que cresce em direção ao centro da terra

                                                             em direção ao vulcão-abóbada-do-infinito

parado, imóvel, em incessante movimento

como uma palavra desgarrada do curso natural do tempo

que se dobra sobre si mesma

em busca do seu próprio útero

e do perfume de uma rara flor que lhe marcou a primeira primavera

Uma senhora bendiz e reza os pés de Assucena

Um homem gordo se arrasta sobre o asfalto como uma lesma no pântano

Ainda é maio, ainda tem suficiente querosene em minhas veias

Ouço o acordeão primitivo e insolente

e adentro a geografia desconhecida das promessas de futuro

enquanto vou desenrolando um fio de azeite e algo de borra de café

São anos de jejum pairando sobre minha cabeça

Orbitando entre minhas virilhas

Parindo máquinas insones que não param de se reproduzir

Ainda é maio, meu avô me presenteia uma lua cheia

adentro suas cavernas e pouco-a-pouco

vou construindo um caminho até seu lado insondável

Agarro-me a São Miguel como se a floresta das mil pétalas enfeitiçadas

estivesse logo ali, à terceira margem do rio

Ouço os transeuntes balbuciando intempéries

Tudo está suficientemente distante

Tudo parece irremediavelmente ausente

Os operários, as ruínas, a cidade grávida de outra cidade

também grávida

e prestes a se dissolver num parto extenuante e cheio de brilho

Ainda é maio: finalmente a lua se permitiu ser vista

entre nuvens que, ironicamente,

não se assemelhavam em nada às nuvens que me acompanharam por toda a vida

Ouço o som das máquinas se reproduzindo como cães indefesos

ou como ratos caseiros que serão devorados na próxima estação

Agarro-me à penumbra e à esperança que morde minhas cicatrizes e vocifera

Os arcanjos de maio bailam uma ciranda bonita

Minhas turvas visões conferem imprecisão às fronteiras do mundo

O fogo me acaricia o corpo, ouço os passos de Alice caminhando de regresso

e recordo, por um instante, o exato momento em que abandonei a jarra de cinzas

Ainda é maio: a fé é o que resta do tempo em que vivemos no útero

Ainda é maio: meu avô está de sentinela na entrada da cidade

Ainda é maio: me despeço, adormeço e ouço a palavra desgarrada

A palavra que inverte o sentido da história

A palavra que não serve aos planos dos políticos sobre a vida

A palavra que não é arma e que se ajusta com precisão às cicatrizes

Nada importa mais em um corpo que as cicatrizes:

o Além é a cicatriz mais profunda

nele a pele sonha um imaginário inabitável e acolhedor

onde pássaros coloridos entoam salmos de louvor ao impronunciável

Ouço o Sol vociferando

Vejo o brilho das estrelas

E toco com a língua o escarnecido feitiço que assombra os lunáticos...


nuno g.

Lima, 15 de maio de 2025.

domingo, 11 de maio de 2025

a cidade dos sonhos acinzentados



estamos em maio - no coração acinzentado de maio

no único mês do ano em que a boca de meu avô não esfumaçava o mundo

esperando não sei quê coisa premonitória acontecera

estamos em maio - no coração acinzentado da Virgem

no único mês em que os sonhos cinzas se tingem de cores

estamos em maio - são quatro e meia da manhã

agradeço e caminho pela cidade imensa

onde as pessoas lutam o tempo todo contra tudo

onde os carros buzinam e se atropelam contra todos

onde as marcas do avanço do capital mancham cada esquina

      cada viela, cada praça, cada traço no rosto de cada transeunte

estamos em maio e já faz frio

ainda recordo que algum dia os ossos da saudade se esfarinharam

mas também recordo que são quatro e meia da manhã e os anjos já estão despertos

nessa cidade onde fui esquilo e maritaca e solidão e esperança

avisto o amanhã e as crianças que nele correm e brincam e sonham sonhos acinzentados

caminho e sonho, sonho e caminho

vejo um moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina

vejo um senhor com fortes traços andinos vendendo flores em aymara

vejo uma senhora caminhando em direção ao mercado com uma bíblia nas mãos

são quatro e meia da manhã, compro meus cigarros

e penso em toda essa guerra que aflora nos olhos de cada transeunte

uma guerra contra a condenação do trabalho perpétuo e inútil

que apenas lhes permite comer e dormir e voltar a trabalhar

e os meus sonhos cinzas voltam a caminhar comigo pelas ruas que se cruzam à neblina

ouço os ossos de minha mãe tocando o solo da calçada

ouço seus ossos se esfarinhando

olho para o céu e vejo seu corpo agora sem ossos brilhando no meio do nada

uma imensa estrela acinzentada anunciando a chegada da próxima lua cheia

vejo minhas filhas olhando o céu e o nada

pedindo a benção à sua avó e agradecendo por estarmos desfrutando dessa cidade cinza

ouço o mar se chocando contra as pedras

em minha memória sempre a presença das coisas para sempre perdidas

em minha memória o futuro das coisas reconquistadas

estamos em maio - quatro e meia da manhã, faz frio

e os anjos cinzentos insistem em caminhar comigo

e os anjos cinzentos insistem em me falar sobre minhas vidas passadas e minhas vidas futuras

e os anjos cinzentos tomam café amargo comigo e fumam cigarros

e me falam de como a ganância está tornando o mundo mais feio e sem graça

e como as pessoas estão esquecendo de agradecer o oxigênio que as mantêm vivas

e como estamos todos tão ocupados que sequer recordamos da benção que é ter um alimento

e me fala dos mercados dessa cidade, dos parques dessa cidade, das feiras dessa cidade

e de como apesar da violência da truculência e do abandono

existe uma preciosa insistência em afirmar um passado tão antigo

e de inventar um caminho até um futuro inusitado

embora o trânsito caótico e mal humorado pareça intransponível

estamos em maio - a mulher que amo ainda tem suficiente leite e razão em seu íntimo

e divide comigo sonhos acinzentados

enquanto espreme os poemas de Alcira Soust Scaffo

enquanto espreme, como se fosse um limão, 

      cada personagem de um mundo onde tudo é violência

enquanto descobre que cada verso que lê agrega ainda mais violência à vastidão da história

depois de tudo parece que o capital venceu

e que todas as saídas estão realmente interditadas

mas ainda existe esse simpático senhor andino vendendo flores de maio

ainda existe este moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina

ainda existe esse anjo que me fala de reencarnação e esperança

      dos barracões do Callao com suas meninas de mini-saia no inverno

      das comidas ofertadas pelo mar

      do amor da mulher que tem razão e leite no corpo

      das minhas filhas pedindo benção à lua

      dos outros poemas que ainda serão escritos por mãos que sequer chegaram 

                                                                                                               ao ninho do útero

mãe, eu te agradeço por estar vivo e poder caminhar nesta cidade

mãe, eu te agradeço pelos meus sonhos acinzentados se encruzilharem 
      
      com o cinza desta cidade

mãe, eu te agradeço por esse mar frio, rude e violento que nos abriga

mãe, eu te agradeço por estares viva e reconhecível nesta lua cinza

mãe, a morte não existe

mãe, daime força para acreditar que o mundo do dinheiro e a escravidão do trabalho 

                                                                                                                           não existem

mãe, daime luz para ver além do que é passageiro e ilusório

mãe, daime amor e gratidão para recordar do que meu avô não chegou a me dizer 

                                                                                                                           antes da morte

mãe, daime tuas mãos e caminha comigo pelas ruas dessa cidade

olha tuas netas brincando no Campo de Marte

olha tuas netas passeando na feira do castelo Rospigliosi

olha teu filho caminhando às quatro e meia da manhã em busca de cigarros e amor

olha teu filho conversando com um senhor que onde estiver estará sempre em Huancavelica

onde estive duas décadas atrás e sonhei com todas as cores do mundo dentro do cinza

águas escorrem entre meus dedos

águas sóbrias e sombrias como a garganta aberta do inimigo

ou um beijo pronunciado em língua desconhecida

seria completamente inútil e insensato esquecer que a vida é triste

assim como é estúpido se agarrar à fantasia que não podemos atravessar a 

                                                                                                encruzilhada dos sonhos cinzas

é maio - mês em que tudo me recorda a Virgem e o meu avô

é maio - mês em que a lua está mais próxima e clareia meus pensamentos

é maio - pressinto minha vó como alegoria e rumor e cuidado e carinho

a cidade amanhece cinza dando continuidade a meus sonhos cinzentos

existe muita vida girando no caleidoscópio de ressentidas estrelas

ainda tenho visões suficientes para seguir caminhando

ainda tenho curiosidade bastante para interrogar o nada e o escuro

ainda tenho o cinza e os sonhos e todas as cores que habitam os sonhos cinzentos

amo o frio, amo o cinza, amo a neblina

amo a mulher que dorme e seu corpo cheio de razão e leite

amo os ossos esfarinhados de uma saudade que nunca deixou de me pertencer

amo o sono tranquilo e pacífico de minhas filhas

faço um café - deve ser o terceiro ou quarto deste amanhecer entre sombras e fumaça

sinto que esse edifício já se deixa ficar para trás

já é memória do tempo em que chegamos nesta cidade

quando ainda corríamos atrás de documentos e de recuperar a memória 

                                                                                              do que nos trouxe até aqui

sinto que amanhã estaremos em uma casa

e os anjos, usando das artimanhas que só os anjos têm,

me falam através do porteiro dos jardins de Santa Beatriz sobre como será a vida lá

das áreas verdes e dos pássaros e das feiras e das comidas 

                                                            e de todas as cores que vivem no cinza

e da alegria em minhas filhas e em cada gesto de Larissa 

                                                            e na dureza do rosto andino que me sorri

recordo da praia de San Miguel, recordo do santuário em que sonhei com minha própria morte

e chovem pétalas de flores sobre a cidade dos sonhos acinzentados

e chovem ossos sobre as saudades que se dissolvem

e chove sobre as poucas lágrimas que me permiti chorar

e chove sobre a mentira, sobre as pálpebras da mentira, sobre a solidão da mentira

sobre o dia em que estaremos em Huancavelica comendo batatas desidratadas ao frio

mascando folhas sagradas 

                   e sonhando com divindades arcaicas que sobreviveram ao império do capital

Assucena desperta, Larissa desperta, Alice desperta

já são quase nove horas e ainda é maio

ainda estamos no mais íntimo recanto do acinzentado coração de maio...


nuno g.
Lima, 11 de maio de 2025.








terça-feira, 6 de maio de 2025

poema de maio

 para Alice & Assucena,


vocês vêm de onde vem a poesia

de onde vem o fogo, a tristeza, o medo e o amor

vocês vêm da terra onde brincam palhaços sonâmbulos

& bailarinas entorpecidas

nada recordo que seja anterior a vocês

nada me atravessa que não tenha sido atravessado antes por seus olhares

minha tristeza, meus medos, meu fogo e meu amor lhes pertence

assim como minha devoção e minha fúria

assim como tudo o que em mim é promessa e horizonte

ou qualquer crença que tenha resistido à ironia e ao ceticismo

tudo seria cinzas se vocês não estivessem aqui

viemos de longe

como o sol, a lua e as estrelas

como os palhaços sonâmbulos e as bailarinas entorpecidas

como a tristeza, o medo, o fogo e o amor...


nuno g.

Santa Beatriz, 06 de maio de 2025.