sábado, 22 de fevereiro de 2025

um chá com meu pai

Meus pais morreram na mesma estação do ano.

Embora não houvessem estações na cidade da morte.

O calendário de folhinhas na loja de meu avô marcava o mesmo dia, o mesmo mês.

Embora não houvesse mês nem dia na cidade da morte.

O homem que apertou o gatilho sabia que ele era meu pai.

                                                    sabia que guardávamos o mesmo nome.

Embora tenha sido morto na cadeia antes de minha chegada.

Não pude olhar nos seus olhos.

Nem escutar sua voz.

A justiça o condenou como ladrão de antiquários.

Talvez fosse só mais um pistoleiro entre tantos.

Quem o matou deveria saber que seu silêncio sepultaria a verdade.

Embora não haja verdades na cidade da morte.

Hoje é sábado.

Os pássaros cantam, o rio corre.

Embora não haja pássaros, sábados ou rios na cidade da morte.

As mãos da minha mãe me ensinaram o caminho da cordilheira branca.

Embora não haja mãos, geografia ou cores na cidade da morte.

Um vento frio atravessou minha pele de vidro.

E quase apagou a vela que acendi lá fora.

Na cidade da morte existem muitas velas acesas.

Embora faça sempre muito frio e o vento sopre incessantemente.

O calendário de folhinhas na loja de meu avô segue aferrado à parede.

Sobreviveu à sua morte e às reformas do prédio.

Embora não haja prédio, nem calendário, nem morte na cidade das memórias.

Hoje é sábado, mas é também o dia fora do tempo.

O homem que apertou o gatilho está aqui.

Embora não tenha olhos nem língua e não saiba mais distinguir em seus sonhos minha face.

Na cidade da morte existem muitos como ele.

Condenados pelos vivos que se recusam a conceder-lhes um copo de água.
                                                                                       
                                                                                           um naco de pão.
                               
                                                                                           uma vela acesa.

Meus pais morreram na mesma hora.

Embora não existam horas na cidade da morte.

Uma sucurujuba saiu do mundo das águas e nos serviu o chá.

Na cidade dos sonhos existem muitas serpentes que habitam às águas.

Nessa cidade meus pais nunca morreram.

Embora não haja nenhuma memória deles no cântico verde das serpentes. 


nuno g.
Toróró, 22/02/25.

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