quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

as joias ou permissão e passagem

terceira tarde de visitação ao inferno:

eis que de meus olhos correram águas de rios antigos

e não houve palha suficiente à arquitetura do ninho de febre e placenta


fixei uma aurora onde toda ternura era ausência:

eis que os vapores de uma perambulação antiga

se fizeram sentir ao entardecer


minha avó guardou as joias por anos

depois de sua morte tocou à minha tia-avó a função

até que Tempo decidiu-se por apagá-las do pesadelo


última noite no inferno:

eis que a umidade se fez memória e amor

e a nudez das crianças povoou os jardins do paraíso


uma carta, uma bala, o corpo de meu pai debulhado ao rés-do-chão

e um silêncio erguendo-se entre os escombros


uma carta, uma bala, o corpo de meu pai debulhado ao rés-do-chão

às almas o vinho que é sangue de uma arcaica teoria sobre o perdão


uma carta, uma bala, o corpo de meu pai debulhado ao rés-do-chão

e uma cor sem-nome sobre um nome que carrega em si todas as cores


amanhã visitarei o inferno outra vez

não irei só e não sei se voltarei

talvez Tempo se decida a apagar o pesadelo

ou ao menos dê passagem à voz de quem me acompanha

e permissão para que eu possa ver as joias preciosas do mistério da resignação


espero que haja chuva quando meus pés voltarem a cruzar as fronteiras da imensidão

e que os vaga-lumes não desistam de seguir acendendo escuridões

nuno g.
Toróró, 20 de fevereiro de 2025

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