O sol reinava no céu como um dragão enfurecido
Quando encontrei o coveiro que agora virou jardineiro
Quando encontrei a cigana que segue sendo cigana
Trazia comigo o tinto carcamano de Fante
Que se misturava ao meu suor como a luz de uma estrela se mistura ao escuro da pedra
Enquanto o mecânico metia as mãos de graxa nas engrenagens do automóvel pirata
Em busca do lugar onde a água vazava
Lari sonhou com um rio inundando as casas
Lari sonhou com a fome dos condenados da terra
Sonhei com todos os descendentes de Edberto Gonçalves reunidos na hora da maré
Com os pés na areia e as faces abertas à brisa do mar do litoral leste
Os sonhos corrigem as distorções da realidade
As poéticas corrigem as distorções da historiografia
As ficções corrigem as distorções do cotidiano
Era já o primeiro dia do ano
E Lari crochetando um sonho de praia e verão
Alice desenhando e Assucena seguindo com os olhos as cismas do destino
O mecânico falava sobre o filho
Prestes a se formar em direito
E eu pensava no pai de Fante
E em todo o tinto carcamano que ele tomou na vida
A cigana fingiu não me reconhecer
O coveiro se ofereceu para voltar ao cemitério e cuidar da sepultura do anjo
Recebo uma mensagem da praia da Fortaleza em Ubatuba
E vejo dezenas de cearenses invadindo uma bodega sob o espanto do caiçara
E vejo Magui devorando areia salgada
E vejo Alice, Bené e Magui brincando e brincando e brincando por vários dias seguidos
Balanço a rede impulsionando o pé na parede
Embalando Assucena
Rodopiando em torno aos meus próprios pensamentos
O ano finda, um tecladista provinciano toca no mercado de Cruz das Almas
As pessoas bebem, riem, se provocam
Tudo é sobre sexo, loucura e morte
Até mesmo o que não parece ser sobre isso
O nada só existe aos olhos de Deus
No meu sonho a única voz que se ouvia era a do tio Paulo
Ele falava sobre a fazenda Galileia e as ligas camponesas
E reproduzia longos trechos dos discursos de Julião
Os sonhos corrigem a realidade
As poéticas corrigem as historiografias
As ficções corrigem o cotidiano
Eu pensava nos contos de Fante
Na delicadeza insuperável de Arturo Bandini
E no caminho amarelo que Ernesto me ensinou em seus últimos dias de vida
As agulhas de tricô são bem distintas às agulhas de crochê
O mecânico encontrou o vazamento
Trocou a peça e me cobrou 150 reais pelo serviço
O sol ardia e derramava fogo líquido sobre nossas cabeças
No meu sonho o mar da Lagoa do Mato seguia tão verde quanto sempre foi
À meia-noite vimos os fogos de artifício estourando lá no fundo do vale
Onde a cidade e as serpentes esperavam a passagem do ano para adormecer
Alice despertou cedo
Eu ainda pensava no conto de Fante em que o menino deseja se casar com a mãe
E em todas as coisas que conversamos ontem à noite
Sobre como seriam nossas vidas se outras coisas tivessem ocorrido
Assucena dormiu
Alice terminou mais um desenho
E Lari seguiu crochetando os fios que conectam os sonhos uns aos outros...
nuno g.
Toróró, 01 de janeiro de 2025.
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