quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

errata à posteridade: sobre Tempo e Ansiedade

Perambulava pelas escaldantes ruas de Cruz das Almas no último dia do ano

O sol reinava no céu como um dragão enfurecido

Quando encontrei o coveiro que agora virou jardineiro

Quando encontrei a cigana que segue sendo cigana

Trazia comigo o tinto carcamano de Fante

Que se misturava ao meu suor como a luz de uma estrela se mistura ao escuro da pedra

Enquanto o mecânico metia as mãos de graxa nas engrenagens do automóvel pirata

Em busca do lugar onde a água vazava

Lari sonhou com um rio inundando as casas

Lari sonhou com a fome dos condenados da terra

Sonhei com todos os descendentes de Edberto Gonçalves reunidos na hora da maré

Com os pés na areia e as faces abertas à brisa do mar do litoral leste

Os sonhos corrigem as distorções da realidade

As poéticas corrigem as distorções da historiografia

As ficções corrigem as distorções do cotidiano

Era já o primeiro dia do ano

E Lari crochetando um sonho de praia e verão

Alice desenhando e Assucena seguindo com os olhos as cismas do destino

O mecânico falava sobre o filho

Prestes a se formar em direito

E eu pensava no pai de Fante

E em todo o tinto carcamano que ele tomou na vida

A cigana fingiu não me reconhecer

O coveiro se ofereceu para voltar ao cemitério e cuidar da sepultura do anjo

Recebo uma mensagem da praia da Fortaleza em Ubatuba

E vejo dezenas de cearenses invadindo uma bodega sob o espanto do caiçara

E vejo Magui devorando areia salgada

E vejo Alice, Bené e Magui brincando e brincando e brincando por vários dias seguidos

Balanço a rede impulsionando o pé na parede

Embalando Assucena  

Rodopiando em torno aos meus próprios pensamentos

O ano finda, um tecladista provinciano toca no mercado de Cruz das Almas

As pessoas bebem, riem, se provocam

Tudo é sobre sexo, loucura e morte

Até mesmo o que não parece ser sobre isso

O nada só existe aos olhos de Deus

No meu sonho a única voz que se ouvia era a do tio Paulo

Ele falava sobre a fazenda Galileia e as ligas camponesas

E reproduzia longos trechos dos discursos de Julião  

Os sonhos corrigem a realidade

As poéticas corrigem as historiografias

As ficções corrigem o cotidiano

Eu pensava nos contos de Fante

Na delicadeza insuperável de Arturo Bandini

E no caminho amarelo que Ernesto me ensinou em seus últimos dias de vida

As agulhas de tricô são bem distintas às agulhas de crochê

O mecânico encontrou o vazamento

Trocou a peça e me cobrou 150 reais pelo serviço

O sol ardia e derramava fogo líquido sobre nossas cabeças

No meu sonho o mar da Lagoa do Mato seguia tão verde quanto sempre foi

À meia-noite vimos os fogos de artifício estourando lá no fundo do vale

Onde a cidade e as serpentes esperavam a passagem do ano para adormecer

Alice despertou cedo

Eu ainda pensava no conto de Fante em que o menino deseja se casar com a mãe

E em todas as coisas que conversamos ontem à noite

Sobre como seriam nossas vidas se outras coisas tivessem ocorrido

Assucena dormiu

Alice terminou mais um desenho

E Lari seguiu crochetando os fios que conectam os sonhos uns aos outros...

nuno g.
Toróró, 01 de janeiro de 2025.

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