domingo, 12 de janeiro de 2025

domingo de chuva

 para lari,


"meu passado era um rio maldito"

William Seward Burroughs



Todos os dias penso na morte.

Quando chove, quando faz sol, quando está nublado.

Todas as noites penso na morte.

Quando sonho, quando não sonho, quando não durmo.

O rio corre. O céu chora. A casa respira em silêncio.

Não estamos mais no deserto.

Tudo está povoado.

Abro as janelas, os gatos entram.

Esquento água para o café.

Atento a cada gesto que amanhece.

Reúno os fragmentos dos sonhos que me povoaram.

Seu pai, Luiz Nova, Clóvis e uma extensa praia mexicana.

Tudo se move o tempo todo.

O que aproxima e o que afasta são um só e o mesmo impulso.

O silêncio sobe e desce a escada de madeira.

Como se fosse um gato.

Como se fosse possível que todas as coisas fossem outras.

Como se fosse desejável que todas as coisas fossem de outra maneira.

Tempo significa ação incessante, movimento perpétuo.

Alice e Assucena brincam.

Perseguem as co-cós em cada janela.

Voltei a sentir medo no meu coração.

Voltei a sentir medo nas minhas carnes.

Sigo sentindo o estranho e fascinante desejo de abandonar este mundo.

Os primeiros ruídos amanhecem.

Reúno os fragmentos de todas minhas frustrações.

Alice arrasta a mala no quarto.

Garfield procura lagartixas na varanda.

Todo o tempo penso na morte.

Na vida que há na morte.

No que a existência da morte nos obriga a fazer.

Hoje é domingo.

Chove e ainda sonho.

Embora saiba que todos os sonhos são mesmo feitos de sexo.

Agora me interessa apenas o que não é sexo no sonho.

Ou seja: o que não é sexo no sexo.

O deserto ficou para trás.

Estamos pisando em terra úmida.

Mangue de terra roxa onde as crianças se lambuzam e se divertem.

Restou pouco, muito pouco, de mim desde que a gira iniciou seu movimento.

Senti vertigens, calafrios, pânicos indescritíveis.

Eles narraram meu corpo até essa manhã de domingo e chuva.

Foram podando tudo que não pertencia à árvore que sou.

Alice regressa a seu quarto.

Não sei o que faz agora.

Não sei se ler ou se voltou a adormecer.

Ouço a vozinha cheia de ternura de Assucena subindo os degraus.

Ouço cada gota da chuva que cai no telhado.

A Pina entra no quarto de Alice.

Penso na morte. Na minha morte. Na morte dos que amo.

Como tenho feito todos os dias.

Penso em tudo que a morte me obrigou a fazer.

Penso em cada poema que escrevi até hoje.

Penso no deserto em que nos encontramos.

E volto à certa praça de Feira de Santana.

Tenho um coco entre as mãos.

Você vomita.

Enquanto esperamos que qualquer coisa venha de qualquer lugar nos curar.

Talvez tenha vindo de nós mesmos.

Talvez tenha vindo das estrelas.

Talvez tenha vindo do fundo do mar.

Talvez, talvez, talvez...

Parece que essa sentença guarda o máximo de certeza que conseguimos tocar com as mãos.

Ou com a língua ou qualquer outra parte do corpo.

Deixo que a chuva toque meus cabelos.

Deixo que o domingo se infiltre em minha oração.

Reúno os fragmentos de deserto que estão aqui ainda.

E com eles vou tecendo os fios da morte em busca das máscaras da vida...


nuno g.

Toróró, 12 de janeiro de 2024.



Um comentário:

  1. Uma linda poesia que me deixou intrigada. A morte também nos escreve ? A morte também pensa em nós! Ok apenas chega como quem apenas deve chegar?

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