terça-feira, 8 de maio de 2018

os palácios da memória ou compaixão pelas fúrias

Maria dorme.
Eu escrevo, rezo e choro – minha intuição me sopra que essas três coisas são uma só: como o mistério indecifrável da santíssima trindade.
O amargo sedimentado converteu meu corpo num mangue. Entre caranguejos, siris e guaiamuns se movem meus desejos e o resto de minhas forças.
Os pássaros cantam na casa do vizinho e penso em como é mágico o caminho que converte tristeza em beleza, ferida em cicatriz, sombras em luzes.
Maria dorme e eu penso em tudo que resta por fazer.
Eu escrevo, rezo e choro sentindo que sob essas ações repousa uma só intenção.
O carro dos ovos passa, o carro que anuncia os funerais passa, o carro do beiju passa: o silêncio por aqui é um bem difícil de se conquistar – tudo fere, esmaga, arranha, excita e distrai. Tudo é vento e carrega sempre pra outro lado. E apesar disso meu corpo-mangue escreve, reza e chora. Imerso num esforço sobrenatural para manter a concentração. Imerso numa guerra onde todos os sentidos fazem o possível para manter o equilíbrio sob o fio da sanidade.
Cantei a pedra e nela o destino. Cantei o rio e nele a sina. Cantei o vale e todos os seus atalhos e todas as suas passagens e nele o sonho. Cantei a ilha e nela a sombra e os animais fantasmagóricos. Cantei a infância e todas suas vestes corrompidas. Escrevi, rezei e chorei e só assim pude compreender que essas três ações são a mesma coisa. Cantei o infinito por me saber finito. Cantei o que me antecedia por me saber velho e antigo. Cantei o que poderá vir a ser por saber que ainda estarei aqui quando partir. Escrevi, rezei e chorei e fiz o que pude sabendo não ser isso o suficiente. Escuto o mar e recordo Van Gogh – tão longe e tão perto como os dragões do desespero, como o sal das lágrimas dos girassóis, como um grito que ecoa num quarto inteiramente destroçado.
Maria dorme e eu tento organizar os acordes dentro de mim: concertar esses sons parece ser a única via para reconquistar o silêncio – assim como a guerra parece ser o único caminho que leva à paz.
Rai cozinha tomates para preparar o molho da pasta. Mato uma barata desorientada com uma chinelada exagerada e o som ecoa na atmosfera. Recordo o meteoro que semana passada avistei no céu. Maria desperta:

o que papai tá fazendo?


Escrevendo, rezando e chorando: tentando salvar a minha alma.


papai é lindo!


O estampido do beijo me faz saber que ainda tenho pele e que o tempo é mais poderoso que as palavras. Larva, esquecimento e doses de álcool forte. Hoje faz sol e todo sol é anúncio de tempestade: assim veem os olhos dos náufragos, assim sentem os corpos-mangues, assim pensa o que se sabe tomado pelo amargo. Cinza é a cor da sanidade. Todo arco-íris não passa de alucinação. Remota é a intuição que respira em nossos instintos – e são os instintos os verdadeiros guias de quem caminha na escuridão.
Maria brinca. O molho está pronto. A campainha toca. O rapaz que veio trocar a borracha da geladeira. Por um instante penso como seria bom poder trocar também meus ossos, minhas vísceras, minhas articulações. Restaria só o sangue e nele a pulsação do mito. Sem esperanças. Sem futilidades. Sem os temores todos que nos atritam contra o vazio. Só a pulsação feroz e insensata do mito no vermelho do sangue. Só o grito da divindade esquecida na fortaleza abandonada. Só a lucidez gerada pela loucura e pelo absurdo. Só o gesto da mão que escreve, do olho que chora, do espírito que reza. Só a busca sem a necessidade do encontro. Só a fábula despida de qualquer ensinamento ou juízo moral. Só a carne e todos os nervos que a atravessam. Os pássaros engaiolados seguem cantando. O cárcere é uma máquina de produzir beleza e autenticidade. A dor me faz saber vivo. Todos estão mortos nessa cidade e qualquer ressureição há muito se tornou impossível. O rio corre sem dizer nada. As nuvens passam sem chover palavra. As crianças brincam e a pasta descansa sobre a mesa esperando a chegada do meio-dia quando nossas fomes a devorará da mesma maneira que os tejos devoram os ovos quando as galinhas estão distraídas.
Rai me abraça – as crianças tomam banho. O aroma do subterrâneo incensa a atmosfera. O calcanhar fraturado lateja. Tudo que ficou pelo caminho já me cobra seu esquecimento e merecido repouso. A justiça é só uma maneira de celebrar os mortos que nos esperam depois do entardecer. É meio-dia: fecho os olhos, rezo, escrevo e choro – nenhum soberano pode restituir uma infância perdida, nenhum algoz pode destruir os maus agouros de uma rasga-mortalha, nenhuma divindade pode talhar feições delicadas num corpo-mangue.
Na escuridão do meio-dia se gestam os sonhos mais belos, mais tristes, mais solitários: parir é a mais delicada das artes e os senhores da guerra sabem muito bem disso, pois aprenderam que só quem ousou matar pode ousar viver.
O fio de azeite que derramo sobre a pasta tem a espessura do fio de minha sanidade.
O beijo de Maria é infinito.
Rai é bonita, me traz um café: nenhum amargo é suficiente para preencher os espaços vazios de um corpo-mangue. Faísca breve entre dois nadas: é o que somos e isso é tudo e isso deveria bastar: mais não basta. Por isso escrevo. Por isso rezo. Por isso choro.
A alma é o que sobra quando a vida nos dissolve a pele.
Amém.

03 de maio de 18.
nuno g.

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