segunda-feira, 16 de abril de 2018

Cântico ao sol esquecido. (poema selecionado pelo prêmio unifor 2017)

radiante o sol do entardecer
que ao despedir-se e submergir no horizonte
ilumina o musgo e o limbo florescente
restituindo à pedra sua pele & sua integridade

radiante o sol do entardecer
que ao despedir-se e submergir no horizonte
acalenta o poeta que desde a margem de seu antigo rio
observa o naufrágio de um coração vazio e abandonado
que ao afastar-se definitivamente do porto
se depara com os escuros corredores que há tanto lhe aguardavam

radiante o sol do entardecer
que apascenta a aurora e
faz vibrar outra vez no céu o arco-íris
faz bailar as raízes sobre a insanidade da relva
guiando até a fronteira do inferno
a derradeira lágrima que escorre

radiante o sol do entardecer
que dissolve como um ácido
as arestas pálidas da facial cicatriz que adorna
o pródigo e perdulário viajante
& que em fumaça transubstancia
sua sombra
e todo o horror que carrega em seu alforje

radiante o sol do entardecer
que arde e consome as cinzas que alheio carnaval
espalhou sobre as vestes brancas que protegiam minhas feridas...

radiante sol do entardecer
no norte a morte não me assusta
seus sussurros são carícias e seus olhos candeeiros
tochas de carvão acesas atrás do fogo-fátuo do mundo
revelando os negativos fotográficos do Sonho miraculoso e perdido

radiante o sol do entardecer
que devolve às trevas o que trevas decidiu ser
com todos seus atributos suas qualidades e suas feições esquálidas...

radiante o sol do entardecer
que ilumina os seres que dançam a ciranda cósmica
e a memória do rio e das margens e das onças que sem nunca existirem
tornaram-se a única e tangível realidade

radiante o sol do entardecer
que em sua trajetória oblíqua
termina por reencarnar o chão onde tudo se iniciou
o sangue inutilmente derramado de meu pai
a catedral em chamas
o cálice da futilidade e do absurdo
e a ressurreição das movediças vísceras das areias entorpecidas de uma praia chamada
      futuro
guiando a derradeira lágrima em direção ao inferno

radiante o sol do entardecer
que ao despedir-se e submergir no horizonte
faz florescer as ervas do deserto
e propaga no vácuo as vibrações nervosas que sobreviveram
à passagem dos fantasmas
à tertúlia dos fantoches
e à caricatura dos esqueletos
descalcificados pela cruenta e bizarra batalha
com a própria sombra

radiante sol do entardecer
lembrança inescusável das divindades sertanejas e seus oráculos
  sua rispidez precisa
  sua fértil aridez
  seus sacrossantos anátemas...

radiante sol do entardecer
crepúsculo e amanhecer do reino das águas claras
sideral espaço povoado por balões mágicos
bonecas que falam
sabugos de milho sábios
rinocerontes encantados
& uma infinidade de quitutes imaginários

radiante sol do entardecer
dissipando com seus raios qualquer culpa
e afastando definitivamente da catedral em chamas
  o coração vazio e abandonado
  os olhos neblinados e suas chantagens
  o cálice do absurdo e da futilidade
e derramando sobre o limbo e o musgo da pedra
seu princípio vital sua beleza sua coragem
restituindo à sua pele
sua ousadia & sua integridade

radiante sol do entardecer
tartarugas de argila, equinócio de sapos
piolhos, cicatrizes, bactérias
cafeína, antibióticos, alucinações
infância desconhecida habitada por moléculas de duendes, sacis, gnomos e outras fadas

radiante sol do entardecer
rainha do ignoto
daimon arcaico que ao meu lado caminha
nossa senhora das carnívoras plantas
& das desterradas flores
rogai por nós
tarântula do paraguassú
rogai por nós
jaguatirica da fazenda do mato alto da serra de calcário
rogai por nós
gavião selvagem do Orinoco
rogai por nós
verdes abutres da colina do bom parto
rogai por nós
nossa senhora da lepra e da boa morte
rogai por nós
virgem da compulsão e da piedade
rogai por nós
não posso dizer nada além de pronunciar teu nome:
o marfim dos meus dentes cravado em teus seios como um amuleto mágico

radiante sol do entardecer
tartarugas de argila, equinócio de sapos
piolhos, cicatrizes, bactérias
cafeína, antibióticos, alucinações...

radiante sol do entardecer
rainha do ignoto
litros & litros de meu esperma
banhando teu corpo
curando no teu sono e no céu da tua boca
acariciando a vertigem de teu rastro
litros & litros de meu esperma
banhando teu corpo – essa capela, esse templo, essa sagrada cidadela
onde sacrifico flores corrompidas pela ação implacável dos trópicos:
flores brutalmente arrancadas do monastério onde as feras se devoram...

nuno g.

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