quinta-feira, 3 de março de 2016

regresso da mais longa das viagens

também o tempo morre e como todos os mortos exige sua sepultura
estive na trácia na índia no paquistão
buscando um chão para esse intervalo miserável de tempo
perambulei maltrapilho e insone carregando esse fardo
esses farrapos de luz e cultura e amor e baba de vira-lata
buscando um lugar adequado para depositar esses restos de vida
que na íngreme subida do himalaia
iniciaram sua transmutação em lixo radioatômico
e ameaçaram a estrutura saudável de minhas células
estive em persépolis na babilônia e em creta
implorando aos filhos de zoroastro um pedaço de cosmos
para enviar esses satélites paralíticos e deformados
que no auge de uma combustão espontânea
ardiam sobre meus ombros
como uma sarça silenciosa e infeliz
irradiando uma poeira fina e asquerosa
que nem bem tocava a pele ou qualquer outra superfície
se transformava em vorazes vermes insaciáveis
que a tudo corroíam com uma fome febril e desmesurada
no meu encalço sempre o hálito da morte
bafo de cálcio e amianto
promessas de vinganças nada doces
rastejando como uma entidade decaída e maquiavélica
na órbita daquele sol que um dia habitou com plenitude a minha face
estive no cariri em olinda e no rio das onças
procurando um palmo sagrado de terra prometida
onde enterrar esse defunto estirado nessa rede
que me tocou carregar sozinho
que transformou minha coluna num tobogã
que provocou dores corporais intraduzíveis
e acelerou o processo natural de envelhecimento dessa carcaça
estive fora por muito tempo
agora estou de volta
trouxe comigo uma das luas de saturno
trouxe comigo uma cor verde típica de uma alga marinha em extinção
trouxe uma nova e estranha serenidade
que encheu de perfume a mochila anteriormente cheia de esterco e solidão
trouxe comigo uma fita cassete com canções jamaicanas sobre a liberdade
com uns poemas novayorkinos sobre magia & perda
com uma linda loira junkie alemã cantando a mais aprazível de todas as estações
cheguei nessa cidade em estado meio sonâmbulo
e andei e andei e andei por essas ruas antigas de calçamento irregular
como um fantasma que mal termina de adentrar o inferno
e percorri todos os caminhos desse povoado de sombras e loucos
como se nunca estivesse saído daqui
como se nunca tivesse conhecido o oriente
como se nunca houvesse existido nenhum regresso
alguns me reconheceram apesar do estado deplorável de meu espírito
e seus dedos e seus olhares e suas mórbidas curiosidades
se esticaram em minha direção
denunciando a deterioração de minhas vestes
o desânimo de minha alma em frangalhos
e o nonsense de meus gestos todos
alguém não hesitou aproximar-se
entregou-me algumas flores
visivelmente mal tratadas pela ação implacável do sol dos trópicos
e me ofereceu um beijo simples e cheio de amor e ternura
em seguida se retirou com passos seguros
com passos de quem sim há muito aprendeu a caminhar só na noite escura...
 
nuno g.

Cachoeira,02 de março de 2016.

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