terça-feira, 23 de abril de 2024

dono das matas

Não sei onde anda a cigana de Araci.

Nem aquela outra que me falou da morte de Ian.

Menos ainda dessa terceira que me vendeu a figa de Assucena.

Segui a cobra verde no caminho dos sonhos.

Ela me levou até um açude onde vi meu rosto refletido com precisão.

Foi tecendo minhas rugas por toda a noite.

Enquanto meu envelhecimento se fazia evidente.

Certa tristeza muito antiga pairava na atmosfera.

Certo descontentamento muito intenso rugia no campanário.

Adormeci e sonhei com o menino Azul e os sete escravos.

Senti medo, muito medo.

Senti frio, muito frio.

Despertei em meio à neblina.

Trazia um anel de prata no dedo.

E dóis sóis onde antes olhos.

A filha da Serpente ao meu lado.

O filho do Ferreiro e a suave memória de um sonho antigo.

Que não posso narrar. 

Que não tenho permissão de narrar.

Não sei por onde andam as três ciganas.

Segui a cobra verde no caminho dos sonhos.

Outra vez até o noturno açude onde se refletia meu rosto.

E o tapete tecido com minhas rugas.

Adormeci e sonhei com o menino Azul e os sete escravos.

Vento frio ao amanhecer.

Mais que medo, angústia e algo de desespero.

Neblina e uma pedra no coração.

Anel de prata no dedo.

A filha da Serpente // O filho do Ferreiro.

A canoa subindo lentamente o rio.

O velho, o elefante e todas as minhas esperanças junto a eles.

Como no dia em que choveu grãos de milho branco sobre as águas.

Como no dia em que choveu grãos de milho branco sobre a cidade de espinhos e estrondos.

Uma senhora vestindo roxo abriu as mãos.

Havia sal e lama entre as linhas de suas palmas.

Um breu branco se instalou no tempo.

Hermenegildo passou trotando em seu cavalo.

Erguendo a poeira do chão.

E abrindo caminho para a chegada da lua de Wesak.

Forjada nas matas sombrias com a luz do ferro e a espada da compaixão.


nuno g.

Toróró, 23 de abril de 2024.

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