quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Rito fúnebre



para claudio reis e seu menino, o lorde basquiat

Eram sete os cavalos e traziam sal nas crinas e memória de flores perfumadas. Eram sete e saltavam sobre a relva e corriam como o vento e partiam anunciando a chegança de barcos e mais barcos e mais barcos abarrotados de horizontes e mais horizontes e mais horizontes. Eram sete barcos e setecentos horizontes montados sobre sete cavalos que traziam sal nas crinas e memória de perfumadas flores. Eram sete cavalos com olhos de chuva e patas de areia. Eram sete cavalos que como o Atlântico suportavam o peso de setecentos barcos e sete mil horizontes. Eram sete cavalos com olhos de noite e neblina navegando no rio de nossos corações. Eram setecentos mil rios dentro de um só coração. Eram águas e águas e águas e memórias de flores perfumadas que embriagavam os sete cavalos e arrepiavam suas crinas embranquecidas de sal. Eram nove e meia da manhã quando ele partiu como um raio que quase não produziu trovão. Vi o céu relampejar de dentro do fosso escuro em que eu estava. Suei e suei e suei como a tampa de uma cuscuzeira cozinhando macaxeira num fogão à lenha. Vi seus olhos nos olhos dos sete cavalos. Vi sua tristeza nos sete horizontes esfumaçados. Vi sua coragem nos sete mil barcos singrando o oceano de meu coração. Eram nove e meia da manhã e ele já não estava mais entre nós. Eram nove e meia da manhã e seu espírito se despediu do seu corpo de quatro patas e pelugem alvinegra e partiu. Eram sete cavalos embriagados saltitando no pasto e escapando das víboras venenosas semeadas pelos homens barbudos que vieram nos barcos de além-mar. Era uma chuva que chegava sempre que brincávamos em volta do fogo. Era uma neblina tão intensa que nossos olhos se fizeram olhos de noite para sobreviver à errância. Era domingo e ele já não mais estava entre nós e eu vi teus olhos nos olhos dele que brilhavam nos olhos dos sete cavalos e eu senti o perfume dele no perfume que emanava dos sete cavalos e eu guardei a memória dele nos sais de cristais que esbranquiçavam as sete crinas. Eram sete montanhas, sete mares e uma moto. Uma medalha de São Bento exorcizava o medo. Uma medalha de São Bento exorcizava a culpa. Uma medalha de São Bento exorcizava a ausência. Eram sete estradas feitas especialmente para sete cavalos. Eram sete milhões de anos reduzidos a um feixe de sete milhões de raios de luz numa manhã de domingo. Tua dor me tocou a pele. Tua tristeza me tocou os ossos. Te entreguei de volta o chão que um dia me entregastes e deixei que nele permanecessem os sete cavalos e a memória de alfazema e sândalo. Meu chão é teu e esse domingo é nosso. Sem saber estivestes aqui buscando a água da leveza na fonte dos metais pesados. Sem saber viestes abandonar teus excessos nesta caverna onde tudo é excessivo. Meus cavalos são teus e teus olhos brilharam nos olhos deles quando ele partiu. Teu chão te devolvo: com afeto, estima e barcos acostumados aos mares revoltos por tempestades. Eram nove e meia da manhã quando agarrei a primeira víbora e com os dentes afiados arranquei fora sua cabeça. Eram nove e meia da manhã quando saciei minha sede com o sangue dessa víbora e com seu chocalho fiz um colar para o mais antigo dos sete cavalos. Banhei esse chocalho em alfazema e sândalo e fiz reluzir toda a memória nele contida. Era um cavalo dócil e com ares infantis que tempos atrás tu acoplara à tua moto para exorcizar tudo o que pudesse te fazer dano. Era um cavalo como um cavalo foi Basquiat na primeira infância perdida de Alice. Era um cavalo exorcista como a medalha de São Bento e sua inscrição em latim. Era domingo e estávamos juntos em algum lugar que não era aqui nem acolá, num lugar que era estrada atravessando nuvens e rios cardíacos em direção ao mar. No meu sonho tua tristeza foi recebida por sete cavalos que te pediram para deixar ele ir para outro lugar. Em meu destino tu foste um chão para minhas sementes de ar. Hoje tua tristeza é minha e esse domingo é nosso até que o atabaque receba o açoite último das mãos avassaladoras daquele que nunca se deixa revelar.

nuno g.
Cachoeira, 07 de julho de 2019.

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