sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Catedral em chamas – estado de guerra permanente

para cruz & souza

em cada vértebra em cada osso em cada célula em cada glóbulo
em cada instante percorrido do ventre intoxicado de nicotina que
habitei por nove longos meses
até esse presente de águas paradas, mortas, cheirando a resíduos
de curtume italiano & papelera nacional
todas as selvas com sua saudável barbárie aniquilada
todos os homens de além-mar
todas as violências sugeridas ou executadas
todos os gozos desperdiçados
em cada pelo de minha sobrancelha inexistente
em cada trecho musical da sinfonia que substituiu minha memória roubada
em cada centelha de larva deste vulcão onde oro
em cada litania que proferi aos decaídos
em cada ferida que abri com meu punhal
em cada garganta que sufoquei com meus próprios punhos
em meu coração que ainda bate que ainda grita que ainda sonha
em cada onça em cada criança em cada sorriso
no centro do sexo de cada uma das filhas de hamurabi
no velho casarão, no cume do paredão de pedra, no apartamento-cemitério
em cada gota de neblina que se apresenta nessa atmosfera
a cada golpe que minha língua desferiu contra a mediocridade de alguém
por todos os versos que escrevi para todos e para ninguém
por todos os versos que não cheguei a escrever por não suportar o que traziam
pelos leprosos que comigo atravessaram as madrugadas
por todos os solilóquios que me conduziram nos labirintos da insônia
por cada dia que me foi concedido sobre essa terra povoada de males e fantasmas
por cada pão que me saciou a sede
pelas mãos que acariciaram meus cabelos
pelo vinho que regou minhas febres e norteou minhas alucinações
– mesmo as mais impróprias e abjetas –
por todas as sombras que dançaram ciranda comigo em volta do fogo
pela mulher coberta de algas & sal
que abriu seu corpo entre as falésias
e me afogou no sangue sagrado que de si jorrava
por cada um dos olhos ou dos cílios que mastiguei sem piedade ou compaixão
pelo terror que travou relações de amizade com minha infância
no silencioso sótão hoje em ruínas
pelas línguas que se perderam nas conquistas e que ressuscitam a cada café da manhã
por cada um de meus naufrágios
por todas minhas ilhas
pela mácula imperdoável nos gestos de quem me negou o que me pertencia
pela minha crueldade e minha capacidade de decepar peixes e
deflorar sonhos em botão
por toda a bílis que vomitei nas incontáveis ressacas que me atravessaram
por tudo e por nada
por todos e por ninguém
pela delicadeza e pela brutalidade
pela freira neurótica e por toda a devassidão dos monges em seus delírios de haxixe
arde, hoje, essa estranha e desfigurada catedral em chamas
e todas as confissões e todas as penitências e todos os exorcismos e
todos os malabarismos e tudo o que é fugaz e o que é impróprio e
o que é devoração e o que é céu azul e o que é meio dia e
o que é cicatriz e o que é insolação e
oásis oásis oásis
– como quando chupastes minha pica ao pôr-do-sol no mirante dos traidores –
a jugular aberta – nunca saberei se por um beijo do inimigo ou pela foice impronunciável –
a chuva, as serpentes rastejando, os leprosos, o calor úmido da selva
– ou seria do útero ainda? –
em cada vértebra em cada osso em cada célula em cada glóbulo de meu sangue
essa chuva que amanheceu se sente
com a mesma intensidade que o chicote na carne de um escravo
sendo açoitado na vitrine da mórbida feira onde transeuntes amordaçados
perdem a vida em estúpidas tentativas de preservar
cada reencarnação cada aparição cada grito abafado
– por meios rápidos eficazes e pretensamente seguros –
na solidão e intimidade que reina entre nossos apetrechos de dormir:
onde o sono se confunde irremediavelmente com as cinzas necrosadas
subitamente revolvidas pelo mar de éter em que estamos todos mergulhados

cachoeira, 15 de dezembro de 2017.
nuno g.

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