quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Impressões sobre "corpo nulo"

parece que vejo o velho
mais osso que carne
mirada de quem pastora cabras
voz de feijão de corda debulhado
infiltrando palavrões no mistério

o primeiro poema me levou a nocaute
os que vieram depois soaram a afago
invitação faz tremer até árvores com raízes de pedra
– e o que somos senão árvores com raízes de pedra, ainda que porosas?

constelação é um desafio astrológico que acende a lamparina do desejo
– pena que há tanto perdi o astrolábio
pés ou cavar de abismos me seduziu por inteiro
– se esse corpo fosse de Aquiles esse poema seria seu calcanhar
além da memória não me disse nada
– talvez por que a vida tenha reduzido meu corpo à memória
canção final cutucou a dor de quem também queria poder fingir inteirezas

em tempos de estiagem corpos se revelam:
caóticos amontoados de palavras.
insônia e ressaca se amalgamaram atrás da minha couraça de fumaça
e se fizeram um só poema
seio é um delírio lindo
jardim dos ácidos é uma bela imagem que sintetiza muitas coisas

não sei por que lembrei do corpo magro do velho
nem a razão de teu corpo nulo aparecer como uma espécie de breve e aforismático tratado
sobre a crise hídrica
e a desertificação do sertão

parece que vejo a sombra de um corpo estranho
– e será que existe corpo que não seja origem e destino de algum estranhamento?
regressando da luz à escuridão
mais carne que osso
mão estendida – ou seria língua?
soprando a chance, outra vez, do sonho

além da memória não me disse nada
o resto me semeou deliciosa sensação.



corpo nulo.
sara síntique.
editora substânsia.

nuno g.

Nenhum comentário:

Postar um comentário