quinta-feira, 3 de agosto de 2017

REVISITANDO O VALE DOS ABUTRES: DEOLINDO TAVARES NA ILHA DOS PATRUPACHAS.

Extenuados, os patrupachas caem e morrem. No dia seguinte, sem saber de onde, surgem novos patrupachas à espera do cachorro d’água, que está sempre a fazer exercícios.
Ilha dos patrupachas, josé alcides pinto.

Uma vez, quando Judith saía do banho, willy tentou abraçá-la com seu sexo de ouro, mas no momento exato em que ia violentá-la, apareceram dois esqueletos que conseguiram afastar a fúria do poeta, usando espelhos importunos que cintilavam ante seus olhos brancos. Quando os desapareceram, willy adormeceu profundamente, pois sentia os olhos feridos. Ao despertar, notou que a irmã estava morta.
O vale dos abutres, josé alcides pinto.

Ainda ontem estive na ilha dos patrupachas, o poeta josé alcides pinto estava sentado no seu trono de especiarias – espichado como um lagarto cintilante. Em suas mãos magras e ósseas, se remexia inquieta e buliçosa, a poesia de deolindo tavares – o poeta devorava os lírios e a loucuras das aventuras de seu esquecido amigo, aprendendo com willy mompou brincadeiras e danças, seguindo os fios eróticos da teia das palavras e dos desejos em seus cânticos. O poeta parou por um instante e olhou para a imagem do cristo presa à parede, tirou do bolso uma caneta e precipitou-se a rabiscar seu acalanto para deolindo tavares, ou melhor, os versos finais do poema:

                   Tu foste, Deolindo, o poeta que mais tarde eu haveria de ser
de mãos nervosas e gestos de pássaro perseguido
em sua rota do azul – ou nas diversas cores dos teus poemas.

Imediatamente recordei do Vale dos Abutres, poema em prosa, onde a atmosfera da realidade poética, nos arranca do território da realidade ordinária e nos faz vislumbrar a surrealidade, o real maravilhoso, o fantástico. Esses três conceitos, cada um com uma história e com definições próprias acerca da estética e da política, formam justamente a pedra-de-toque das principais abordagens sobre a obra do poeta. Seu nome aparece sempre vinculado aos movimentos a qual correspondem estes conceitos: o surrealismo francês, o realismo mágico latino-americano, o existencialismo. Completando as interpretações críticas, encontramos a santíssima trindade dos temas: o sexo, a loucura e a morte. Sobre tudo isso, muita coisa já foi dita e explorada, embora, creio, muitas outras ainda serão. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção quando eu estudava sua obra, foi justamente esta leitura de deolindo que o poeta realizou em sua vivência na capital pernambucana. Foi lá que alcides entrou em contato mais direto com a experiência dos conflitos de classe, o mundo das greves e dos sindicatos, foi lá que o poeta escreveu os catadores de siris e incorporou a seu universo literário as condições miseráveis impostas pelas contradições econômicas de uma sociedade norteada pelos valores do capitalismo. Mas foi também na cidade do Recife que o poeta descobriu o lirismo onírico e o repertório de imagens que atravessam a saga de willy mompou. Os versos de deolindo impactaram profundamente sua escrita, era esse impacto que me interessava à época. Sobre ele, desejei escrever um poema em prosa, tendo como personagens os dois poetas, willy mompou, judith e os patrupachas.
Alguns anos se passaram e nunca consegui concluir este texto. Meu HD queimou e perdi os rascunhos dele. Vim morar no recôncavo e num dia comum, recebi por i1/2 a notícia de sua morte, ou melhor, de sua transfiguração. Não estava mais entre nós o mais versátil e criativo dos escritores cearenses do século XX. Não estava mais entre nós o mais aberto ao diálogo e à conversa dos poetas da província de Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção. Foi um dia triste. Nas margens do rio paraguassú, em frente ao point das morenas, fiquei sentindo a tristeza e a fúria daquele instante. Entregue às incertezas certeiras das perdas. Pensei na primeira vez que nos encontramos, meu nervosismo e seu jeito sério de brincar com as palavras e os palavrões. Pensei nas inúmeras conversas que tivemos e nas tantas outras que nunca chegamos a ter. Em seguida, fui à ilha dos patrupachas, onde presenciei a cena com que início este texto, e após o assalto das idéias relatadas, não resisti a revisitar o vale dos abutres, parei precisamente naquele ponto em que mary duncan veio até à janela para avisar mompou que os nazistas ameaçavam destruir o mundo. Acontece, porém, que os olhos do poeta descortinaram as paisagens mais negras que se possa imaginar. Então, pulando no topo de um girassol, o poeta abriu o vôo vermelho para um mundo tão distante do nosso, onde nenhum avião poderá alcançá-lo, e onde, por certo, jamais chegará um átomo destruidor. Fiquei em silêncio perante a beleza desta imagem, uma das tantas portas de entrada para este mundo de histórias não-ditas, tecidas com sonhos e delírios de homens que se recusaram a viver nos territórios estreitos da realidade e da morte – homens que se fizeram poetas e nos ajudam todo dia a superar o tédio das aparências e os sorrisos frios estampados nos outdoors de nossas desumanas cidades  neste esdrúxulo meio-dia industrial, onde qualquer um de nós, pode ser fatalmente engolido por uma motocicleta extraviada numa manhã de um sábado de sol.

nuno g.

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