quarta-feira, 20 de julho de 2016

outra vez, a ilha

Sábado: cerveja, feijoada, alice. As janelas abertas, escancaradas, exercendo sua devoção à passagem do tempo. Pedra antiga. Pedra tingida. Pedra estranhamente deseducada pela delicadeza. Pedra reverenciando o rio, a passagem, as vazantes: a fartura das vazantes. Sábado: paraguassú transubstanciado em Jaguaribe. Sábado, verso antigo encontrado entre teias de aranha: de tanto ser ilha perdi o temor dos naufrágios. Sábado: cachoeira de crianças no curiaxito resistindo aos arranha-céus, ao asfalto, às teorias pedagógicas que em doses homeopáticas anestesiam a má-consciência da pequena-burguesia febril.  Elvis está vivo, calamaro, o balanço da rede, tempo nublado. Fazia tempo que tudo não estava tão bem. Tudo parece está bem novamente. O mar voltou ao seu leito. Meus pés regressaram a algum chão. Me arde, calamaro, me está queimando. Olho a jangada, me distraio. Penso na viagem para a qual construí essa jangada. Penso em todo o material que utilizei nessa empreitada: as madeiras, o sal e os fios embaraçados de meu cabelo. A travessia é larga, o sertão é grande, os rios estão assoreados. Tentarei pelo mar, margeando a costa. Olhando as falésias. As dunas. Os corações de cristal. Os gaviões. Principalmente os gaviões. Ouvirei outra vez o canto das onças? Que cor terá esse canto agora? E com que mãos escalarei o velho paredão de pedra? Você estará lá? Encontrarei ninho em teus braços? Estarei sendo enganado por essa brisa?... Perdão, é que a vida me tornou um bocadinho cético, mas ainda anseio evitar o cinismo... ainda trago aquele desejo arcaico de retornar ao corpo em que nasci: aquele que tinha asas e sabia fabricar céus e arquitetar cosmogonias e depositá-las aos teus pés... oferenda de tiquira nas terras do araçagi... essa brisa que embala esse sábado... essa brisa... teus beijos... cidadão instigado... alguma música... essa brisa... teus pés em minhas mãos... teus lábios em meus lábios... os navios no horizonte... as ruínas na terceira margem... as onças cantando... o paredão de pedra... o mistério das terras do mato alto... o segredo do velho da carroça de fogo... os blues que compus enquanto você esteve por aí... os blues que compus quando estávamos aprendendo o ofício de purificar metais com fogo... os blues que compus quando aprendíamos a manejar esses instrumentos que temos agora... o silêncio não espera de nós arqueologias, o silêncio grita por um futuro... anêmonas, vestimentas de piratas e rebanhos de aves de arribação... é sábado – e a geografia dessa tarde extrai excessos de meu corpo, permito que essas forças me moldem, permito sua ação sobre meu desejo, me permito que ela me possua e que sinalize paragens desconhecidas, que converta todos os sintomas numa cálida memória de lugares inóspitos e suas esperas: ainda as mais longas, ainda as mais tardias, ainda as mais incertas...

nuno g.

Cachoeira, 16 de julho de 2016.

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