cadê meus cavalos, meus sonhos,
minha filha? Não é possível que esse pântano tenha tragado tudo! Será por isso
que meu avô chamava esse lugar de tempo? Cadê a lua, cadê o sol, cadê a
coragem? Terá tudo terminado assim sem mais nem menos? Estarão os deuses a
brincar comigo? Logo eles: em quem eu depositei toda minha fé minha vontade e
minha vida. Eles que me ensinaram a jogar com ossinhos nessas várzeas de
piçarra e carnaubais. Logo eles! Estarei de agora em diante me distanciando de
meu próprio centro numa velocidade inimaginável? O que restará depois de minha
desintegração? Haverá algo além dessa pele que se decompõe a olhos vistos?
Haverá outros sobreviventes dessa hecatombe ou serei eu o único? Cadê as
plantações de milho e feijão que agora a pouco a chuva regava? Cadê a capelinha
de são josé e o barzinho de dona maria? Cadê minha filha com seus olhinhos
ávidos e suas estórias de estrelas anjos sonhos e pôneis? Cadê o cemitério onde
descansam meus pais? Cadê os sanfoneiros com suas alegrias desenfreadas? Cadê
as crianças brincando no terreiro? Cadê o alpendre com suas onze mil redes
esperando por nossos cansaços? Cadê o gibão que nessa caatinga de meu deus
sempre me protegeu das juremas dos cardeiros e das assombrações de aluvião?
Cadê o gavião que nesse céu deslizava como majestade? Onde foram parar meus
pesadelos? Aquela cela sem porta e sem janelas e aqueles homens encapuzados que
nela me trancafiavam? Haverá desaparecido tudo que tornava o mundo
reconhecível? Cadê meus amigos fazendo estripulias e o rio com seus rebanhos de
arribação? Cadê a serra com seu calcário & agrotóxico? Cadê a rua dos
cabarés, cadê a noite pra aplacar a ira desse clarão que me cega? Cadê os
raios, as tempestades e aquele acampamento de ciganos debaixo do pé de
oiticica? Cadê o baú de livros que herdei de meus antepassados? Os manuais de
pirotecnia, os tratados maçônicos, as psicografias kardecistas? Cadê os
folhetos de bang bang e os cordéis e as iluminuras? Cadê as velas, os beatos,
os cangaceiros? Quem destruiu o mundo assim de supetão? Por que diabos
sobrevivi a essa hecatombe, a esse sinistro e inesperado apocalipse? O que
farei daqui por diante se não reconheço nada à minha volta? Nem minha própria
imagem me é familiar agora. Não posso chorar. Não posso sentir raiva. Não tenho
mais amor. Não reconheço as nuvens. Não reconheço o chão. Só tenho um punhado
de memórias que a qualquer segundo podem se esfarinhar e desaparecer como todo
o resto. Nem sombras, nem fantasmas, nem figuras ou manchas desbotadas. Apenas
a insanidade de um firmamento selvagem que carbonizou toda a flora toda a fauna
e todas as peripécias e episódios de minha longa educação sentimental. Onde
estão aqueles poemas de josé alcides pinto? Onde estão os três vales
premonitórios de minha infância? E o mar? Que dragão teria tanta sede pra
engolir todo aquele sal? As jangadas, os pescadores, os coqueirais? As
falésias? Onde está todo aquele encantamento que desdobrava o tempo de minha
juventude numa série infinita de eternidades aprazíveis e delicadas? Cadê meu
desejo? Cadê minhas estradas? Cadê a antiga fazenda do mato alto com seu
casarão de pedra suas cercas de pedra e sua torre mística? Cadê as cabras, os
missais, os oráculos sombrios e tenebrosos? Cadê minhas veias, onde foi correr
meu sangue, que usurpador levou as relíquias de corisco que guardei por tantos
anos? Onde está o escombro disso tudo? Como é possível tanta coisa desaparecer
sem deixar sequer escombros? Não há sequer sinal de ruínas, nenhum vestígio,
serei o único a recordar de tudo isso que o mundo foi um dia? Onde está minha
filha, quem a levou? Ela é minha última esperança de que tudo que desapareceu
não se perca definitivamente. Ela saberá de cor toda a história de como
chegamos até aqui. De como nos tornamos o que somos. De como nossas misérias,
nossas desgraças, nossas rebeldias, nossas couraças, nossos prazeres, nossa
valentia e nossas travessias valeram a pena. Onde estão os junkies esfarrapados
com seus catecismos químicos e seus mantras alucinados? Onde estão as duas
fortalezas que protegiam a entrada de nossas terras? Onde estão aqueles
descendentes de holandeses que ficaram por aqui e se misturaram com os tapuias?
Onde estão as éguas russas que os invasores avistaram no dia de são bernardo?
Onde está a farmácia onde comprávamos elixir paregórico pra extrair um pouco de
ópio e apaziguar nossas angústias? Onde está toda aquela metafísica telúrica
que adornamos século a século? Onde estão as cascáveis, as onças, as jaçanãs,
os marrecos e os capotes com quem compartilhávamos nossa solidão existencial? Onde
está a ilha das feiticeiras? Onde está o vento Aracati? Onde está minha alma,
meu coração, meus sentidos, meus instintos? Tudo desapareceu como um fogo
fátuo. Como uma nebulosa distante. Como uma neblina madrugadeira. Cadê o
lunário perpétuo, a missão abreviada, as imagens dos santos? Cadê meu corpo?
Cadê meu grito? Cadê minha filha? Haverá saída desse abismo? Haverá um guia que
me ofereça uma mão para escapar desse labirinto? Alguém algum dia poderá
reconstituir o que ocorreu aqui? Restará algum fragmento que permita
interpretar o simbolismo maldito dessa tragédia sem igual? Morrerei como uma
coruja que antes do parto profetizou sua própria morte ou como um galo que pela
manhã cantou o velho sol esquecido? Quem sou eu? Quem de maneira tão súbita destruiu
o mundo? Como perdoar um ser capaz de tão bizarro gesto? Como vingar-se de
criatura capaz de tamanha atrocidade? Como reinventar do nada um mundo? Como
não se entregar e não se abandonar à autoconsumação? Como não extinguir-se
quando tudo o que nos faz ser o que somos já extinguiu? Onde está minha filha?
Que fogo consumiu o ventre que a pariu? Onde estou? Que nuvens são essas? Que
chão é esse? Será por isso que meu avô chamava esse lamaçal de tempo? Será que
foi ele que tragou todo esse universo e suas atmosferas? Será que um demiurgo
pode refazer um mundo só com cinzas & lembranças? E essas membranas em meus
dedos? E essas armas enterradas em meus pulmões? E as promessas que fiz no
campo santo? E o amor? E as paixões? E o sofrimento? Terá sido tudo em vão? Não
haverá nenhum sentido nessa roda de samsara? Onde está nossa casa? Onde está
nossa terra prometida? Onde está meu avô? Onde está o assassino de meu pai?
Onde estão as estrelas que eu conhecia? Onde está o rosário de minha bisavó?
Onde estão meus primos? Onde estão meus cavalos? Onde está o sertão? Onde estão
os hippies da praça? Onde estão as vazantes e as barreiras? Onde está minha
bicicleta? Onde está meu pesadelo mais delicado? Onde está minha calça jeans
favorita? Onde estão as mulheres verdes, onde estão as mulheres algas, onde
está a dinamite pra explodir a cabeça deste século impuro? Onde está Esopo e
todos os contadores de fábulas? Onde está... onde está... onde...
... onde estão os sermões, os
pecados e os confessionários? Onde estão os automóveis & a poeira das
vestes desfiguradas? Onde estão os monges ascéticos? Onde estão os sábios que
me ensinaram a arte da decifração dos cantos das onças? Onde está a carroça de
fogo? Onde estão os peixes multiplicados? Onde estão os lírios encantados? Onde
está o tamarindeiro da Timbaúba? Onde estão os córregos que nos orientavam por
estas várzeas? Onde está o escapulário que me protegia contra o mal? Onde estão
as plumas do gavião? Onde está a carcaça do touro? Onde andarão os mateus? Os
reisados? Os tocadores de pífanos? Que tamanho terá essa noite? Quem desvendará
a geografia dessa escuridão? Em qual região do inframundo foi parar aquele
amolador de punhais que criava demônios no pé daquela colina habitada pelos
abutres verdes? Onde estão minhas lágrimas? Onde está meu amor? Onde foi parar
aquele caderninho de equações matemáticas que herdei de meu tio? Onde...
onde... onde...
nuno g.
cachoeira, 26 de junho de 2016.
Onde está a alma no olhar das pessoas? Onde está a imensa caraúba que até ontem estava na Aguanambi? Onde estão os bons dias, boas tardes e boas noites? Onde está a gentileza de desejar saúde no momento do espirro? E tantas outras perguntas que chegam a todo instante de vida. É massante! E já que eu não vou ter da vida as respostas serei eu a resposta. Espero não cansar e seguir nesse questionário. Posso fazer como a vida faz e mudar as perguntas também ao meu bel-prazer.
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