domingo, 26 de junho de 2016

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cadê meus cavalos, meus sonhos, minha filha? Não é possível que esse pântano tenha tragado tudo! Será por isso que meu avô chamava esse lugar de tempo? Cadê a lua, cadê o sol, cadê a coragem? Terá tudo terminado assim sem mais nem menos? Estarão os deuses a brincar comigo? Logo eles: em quem eu depositei toda minha fé minha vontade e minha vida. Eles que me ensinaram a jogar com ossinhos nessas várzeas de piçarra e carnaubais. Logo eles! Estarei de agora em diante me distanciando de meu próprio centro numa velocidade inimaginável? O que restará depois de minha desintegração? Haverá algo além dessa pele que se decompõe a olhos vistos? Haverá outros sobreviventes dessa hecatombe ou serei eu o único? Cadê as plantações de milho e feijão que agora a pouco a chuva regava? Cadê a capelinha de são josé e o barzinho de dona maria? Cadê minha filha com seus olhinhos ávidos e suas estórias de estrelas anjos sonhos e pôneis? Cadê o cemitério onde descansam meus pais? Cadê os sanfoneiros com suas alegrias desenfreadas? Cadê as crianças brincando no terreiro? Cadê o alpendre com suas onze mil redes esperando por nossos cansaços? Cadê o gibão que nessa caatinga de meu deus sempre me protegeu das juremas dos cardeiros e das assombrações de aluvião? Cadê o gavião que nesse céu deslizava como majestade? Onde foram parar meus pesadelos? Aquela cela sem porta e sem janelas e aqueles homens encapuzados que nela me trancafiavam? Haverá desaparecido tudo que tornava o mundo reconhecível? Cadê meus amigos fazendo estripulias e o rio com seus rebanhos de arribação? Cadê a serra com seu calcário & agrotóxico? Cadê a rua dos cabarés, cadê a noite pra aplacar a ira desse clarão que me cega? Cadê os raios, as tempestades e aquele acampamento de ciganos debaixo do pé de oiticica? Cadê o baú de livros que herdei de meus antepassados? Os manuais de pirotecnia, os tratados maçônicos, as psicografias kardecistas? Cadê os folhetos de bang bang e os cordéis e as iluminuras? Cadê as velas, os beatos, os cangaceiros? Quem destruiu o mundo assim de supetão? Por que diabos sobrevivi a essa hecatombe, a esse sinistro e inesperado apocalipse? O que farei daqui por diante se não reconheço nada à minha volta? Nem minha própria imagem me é familiar agora. Não posso chorar. Não posso sentir raiva. Não tenho mais amor. Não reconheço as nuvens. Não reconheço o chão. Só tenho um punhado de memórias que a qualquer segundo podem se esfarinhar e desaparecer como todo o resto. Nem sombras, nem fantasmas, nem figuras ou manchas desbotadas. Apenas a insanidade de um firmamento selvagem que carbonizou toda a flora toda a fauna e todas as peripécias e episódios de minha longa educação sentimental. Onde estão aqueles poemas de josé alcides pinto? Onde estão os três vales premonitórios de minha infância? E o mar? Que dragão teria tanta sede pra engolir todo aquele sal? As jangadas, os pescadores, os coqueirais? As falésias? Onde está todo aquele encantamento que desdobrava o tempo de minha juventude numa série infinita de eternidades aprazíveis e delicadas? Cadê meu desejo? Cadê minhas estradas? Cadê a antiga fazenda do mato alto com seu casarão de pedra suas cercas de pedra e sua torre mística? Cadê as cabras, os missais, os oráculos sombrios e tenebrosos? Cadê minhas veias, onde foi correr meu sangue, que usurpador levou as relíquias de corisco que guardei por tantos anos? Onde está o escombro disso tudo? Como é possível tanta coisa desaparecer sem deixar sequer escombros? Não há sequer sinal de ruínas, nenhum vestígio, serei o único a recordar de tudo isso que o mundo foi um dia? Onde está minha filha, quem a levou? Ela é minha última esperança de que tudo que desapareceu não se perca definitivamente. Ela saberá de cor toda a história de como chegamos até aqui. De como nos tornamos o que somos. De como nossas misérias, nossas desgraças, nossas rebeldias, nossas couraças, nossos prazeres, nossa valentia e nossas travessias valeram a pena. Onde estão os junkies esfarrapados com seus catecismos químicos e seus mantras alucinados? Onde estão as duas fortalezas que protegiam a entrada de nossas terras? Onde estão aqueles descendentes de holandeses que ficaram por aqui e se misturaram com os tapuias? Onde estão as éguas russas que os invasores avistaram no dia de são bernardo? Onde está a farmácia onde comprávamos elixir paregórico pra extrair um pouco de ópio e apaziguar nossas angústias? Onde está toda aquela metafísica telúrica que adornamos século a século? Onde estão as cascáveis, as onças, as jaçanãs, os marrecos e os capotes com quem compartilhávamos nossa solidão existencial? Onde está a ilha das feiticeiras? Onde está o vento Aracati? Onde está minha alma, meu coração, meus sentidos, meus instintos? Tudo desapareceu como um fogo fátuo. Como uma nebulosa distante. Como uma neblina madrugadeira. Cadê o lunário perpétuo, a missão abreviada, as imagens dos santos? Cadê meu corpo? Cadê meu grito? Cadê minha filha? Haverá saída desse abismo? Haverá um guia que me ofereça uma mão para escapar desse labirinto? Alguém algum dia poderá reconstituir o que ocorreu aqui? Restará algum fragmento que permita interpretar o simbolismo maldito dessa tragédia sem igual? Morrerei como uma coruja que antes do parto profetizou sua própria morte ou como um galo que pela manhã cantou o velho sol esquecido? Quem sou eu? Quem de maneira tão súbita destruiu o mundo? Como perdoar um ser capaz de tão bizarro gesto? Como vingar-se de criatura capaz de tamanha atrocidade? Como reinventar do nada um mundo? Como não se entregar e não se abandonar à autoconsumação? Como não extinguir-se quando tudo o que nos faz ser o que somos já extinguiu? Onde está minha filha? Que fogo consumiu o ventre que a pariu? Onde estou? Que nuvens são essas? Que chão é esse? Será por isso que meu avô chamava esse lamaçal de tempo? Será que foi ele que tragou todo esse universo e suas atmosferas? Será que um demiurgo pode refazer um mundo só com cinzas & lembranças? E essas membranas em meus dedos? E essas armas enterradas em meus pulmões? E as promessas que fiz no campo santo? E o amor? E as paixões? E o sofrimento? Terá sido tudo em vão? Não haverá nenhum sentido nessa roda de samsara? Onde está nossa casa? Onde está nossa terra prometida? Onde está meu avô? Onde está o assassino de meu pai? Onde estão as estrelas que eu conhecia? Onde está o rosário de minha bisavó? Onde estão meus primos? Onde estão meus cavalos? Onde está o sertão? Onde estão os hippies da praça? Onde estão as vazantes e as barreiras? Onde está minha bicicleta? Onde está meu pesadelo mais delicado? Onde está minha calça jeans favorita? Onde estão as mulheres verdes, onde estão as mulheres algas, onde está a dinamite pra explodir a cabeça deste século impuro? Onde está Esopo e todos os contadores de fábulas? Onde está... onde está... onde...


... onde estão os sermões, os pecados e os confessionários? Onde estão os automóveis & a poeira das vestes desfiguradas? Onde estão os monges ascéticos? Onde estão os sábios que me ensinaram a arte da decifração dos cantos das onças? Onde está a carroça de fogo? Onde estão os peixes multiplicados? Onde estão os lírios encantados? Onde está o tamarindeiro da Timbaúba? Onde estão os córregos que nos orientavam por estas várzeas? Onde está o escapulário que me protegia contra o mal? Onde estão as plumas do gavião? Onde está a carcaça do touro? Onde andarão os mateus? Os reisados? Os tocadores de pífanos? Que tamanho terá essa noite? Quem desvendará a geografia dessa escuridão? Em qual região do inframundo foi parar aquele amolador de punhais que criava demônios no pé daquela colina habitada pelos abutres verdes? Onde estão minhas lágrimas? Onde está meu amor? Onde foi parar aquele caderninho de equações matemáticas que herdei de meu tio? Onde... onde... onde...



nuno g.
cachoeira, 26 de junho de 2016.

Um comentário:

  1. Onde está a alma no olhar das pessoas? Onde está a imensa caraúba que até ontem estava na Aguanambi? Onde estão os bons dias, boas tardes e boas noites? Onde está a gentileza de desejar saúde no momento do espirro? E tantas outras perguntas que chegam a todo instante de vida. É massante! E já que eu não vou ter da vida as respostas serei eu a resposta. Espero não cansar e seguir nesse questionário. Posso fazer como a vida faz e mudar as perguntas também ao meu bel-prazer.

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