a nostalgia é um sentimento enganoso
Larissa Gonçalves Ferreira
Era uma vez uma aldeia feita de piçarra vermelha e água da chuva.
Nela não havia morte, não havia nada que recordasse a presença rude e áspera da morte.
As tardes escorriam por entre os dedos das pessoas que envelheciam e se afogavam em insônias.
Era uma vez uma aldeia sem nome onde sempre era dezembro.
Os amanheceres eram frescos e saudáveis como os cajus que nascem nos arenosos tabuleiros.
E as noites eram infinitas como infinitas são as várzeas do baixo Jaguaribe.
Era uma vez uma aldeia feita de piçarra vermelha e ossos.
Todos seus habitantes estavam mortos, embora nada lhes recordasse sua condição.
As palmeiras de carnaúba, o açoite do vento Aracati, o desespero atávico.
Tangendo o eterno dezembro que nunca passa.
Tangendo o eterno dezembro que nunca chega.
Tangendo o eterno dezembro para os confins do deserto.
Onde tuberculosos e sifilíticos dançam a ciranda do daimon arcaico.
Onde o Anjo Vermelho celebra a memória de seus próprios aboios.
O vento Aracati, implacável, tangendo incêndios e ruínas.
E oferecendo com suas mãos aéreas e insanas o sangue subterrâneo e a luz esverdeada.
Que povoa os despovoados sonhos da criança que insiste em escalar montanhas.
Na esperança absurda de tocar com os cílios os raios do sol esquecido.
Era uma vez uma melancólica aldeia perdida entre o nada e o nada.
Onde cardumes de abelhas teciam suas colmeias no corpo do esquelético e assustado espantalho.
E o som da pólvora se misturava à voz doce e delicada do Anjo Azul.
Trovões e raios se escutavam e se avistavam por todos os lados.
E as pessoas, apesar de abstêmias, pareciam todas embriagadas.
E a fumaça tóxica e aromática dos cigarros se fazia sentir em cada recanto.
Era uma vez uma aldeia onde todas as árvores estavam esclerosadas.
Onde apenas as pedras não padeciam do mal de Alzheimer.
E o som da pólvora se misturava ao negro do luto e ao silêncio que antecede qualquer tragédia.
Era uma vez uma aldeia repleta de cata-ventos e tapetes voadores.
Enraizada sob um céu estrelado e imenso.
Onde não havia morte nem qualquer sinal da existência da morte.
Onde todos estavam irremediavelmente mortos.
Era uma vez uma aldeia atravessada ao meio por um grande rio.
Em sua lâmina se refletiam todas as mentiras do mundo.
E o medo estúpido que seus habitantes carregam sobre os ombros.
Como as formigas carregam toda sorte de vestígios do passado que encontram pelo caminho.
Era uma vez uma aldeia onde morcegos e abutres alimentavam-se do lodo.
E dos líquidos que jorravam abundantemente dos olhos cegos de seus habitantes.
O vento Aracati, impecável, varrendo para os confins do mar desconhecido.
O precário, o provisório, o obtuso e o indefinido.
E as lâminas das divindades das madrugadas decepando com delicadeza o sino da catedral.
Enquanto as feras, sob as ordens do Sétimo, passeavam com seus cálices metálicos.
As cabras orando às nuvens e à Senhora de todas as nuvens.
E as pessoas bebendo, finalmente, o sangue de seu próprio corpo.
Era uma vez uma aldeia onde as crianças eram gestadas fora dos ventres.
Nas praças, nos becos e nas calçadas.
Nas águas dos açudes com suas sombras peregrinas.
À luz da lua e das lamparinas de querosene.
Era uma vez uma aldeia onde tudo estava por acontecer.
Onde se comia feijão com as mãos e com farinha.
Onde se amava o escuro e a solidão.
Ondo os solilóquios eram a regra e os diálogos a exceção.
Onde o silêncio uivava aboios incompreensíveis.
Onde tudo estava por ser traduzido e toda história era sentida como tradução.
Era uma vez uma aldeia feita de piçarra vermelha, nostalgia e água da chuva.
Sim, a nostalgia nada mais é que uma serpente traiçoeira e exigente.
Em sua memória e devoção entrego-lhe este poema.
Que, por certo, não é exatamente um poema.
É outra forma de traduzir veneno para a língua do sangue e dos anjos.
Onde tudo que se diz é eco, passagem e oração.
nuno g.
Lima, 11 de dezembro de 2025.