domingo, 13 de dezembro de 2020

o não, o cansaço e um sorriso

o carnaubal estava visivelmente abatido

tia Neuza sonhara procurando deus

que, como de costume, se ocultava

a casa nunca me parecera tão real

embora Maria ainda não estivesse chegado

na estante, o álbum vermelho

com o Cebolinha sacando uma foto da Mônica na capa

guardando as fotografias de Eliana e seu filho na praia

dormimos, tomamos café, comemos manga

a praça vazia de domingo

o carnaubal devastado

tia Neuza sonhando como de costume

deus nunca me parecera tão irreal

apesar de minha certeza que era ele o que balançava a rede

o telefone tocou, não era Maria

as horas se curvavam ante a manhã

a casa nunca me pareceu tão silenciosa

não vi os mortos que a habitam

não senti suas presenças

o carnaubal estava em estado terminal

os ácaros do progresso faziam o trabalho sujo

o quadro de Eliana me esperava na casa ao lado

a pressa me escapara no caminho

o não, o cansaço e o sorriso

eram mais do que suficientes para tornar o dia agradável

eu também não ousaria pisar naqueles degraus onde a poeira se acumulara

se há tanto tempo eu não soubesse que aquela madeira ainda suportaria o peso

o relógio da sala estava quebrado

, por um breve instante,

vislumbrei entre seus ponteiros estacionados

a precária imensidão de meu coração

 

nuno g.

russas, 13 de dezembro.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020


 

no meio do caminho

tinha uma escada no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma escada

nunca me esquecerei que tinha uma biblioteca no último degrau

uma biblioteca dedicada ao Nada

tinha uma escada no meio do caminho

tinha os cem olhos da tempestade de areia fina

tinha a pintura de uma moça com brinco de pérolas no meio do caminho

e os cem mil raios da Senhora,

tinha um vazio no meio do caminho

nunca me esquecerei do beijo que não tinha no meio do caminho

nem da escada nem da biblioteca nem do nada

no meio da escada tinha um caminho

mas não são todos que desviam no meio das escadas

tinha uma tempestade no meio do caminho

tinha uma manta assurini awaeté no meio do Sonho

e do mirante da casa do guarda do Belmonte se via

a escada, a biblioteca,

o Nada, a Sina e o Vazio

nunca esquecerei que tinha um caminho no meio da escada

nem que no meio da escada tinha um caminho

e que quase ninguém desvia em caminhos no meio de escadas

ainda quando estes levem às cascatas de águas frescas

correndo entre antigos pés de buritis

tinha um silêncio no meio do caminho

no meio do caminho tinha um silêncio

e toda a potência que um corpo necessita:

seja para desviar-se do previsto

ou para escalar a escada até o topo


nuno g.

dez de dezembro.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Teoria das próximas horas

 para Claudio Reis,


nossos filhos nos antecedem

nossos ancestrais estão adiante

a cronologia é uma prisão de areia movediça

e paredes de acrílico

fundamento que resulta da sedimentação

grãos de tinta expostos ao sol

sempre à beira de um incêndio

caminhando sobre fios descascados

e sobre as folhas secas e as ruminações de Lilith

nossos filhos nos antecedem

nossos ancestrais estão adiante

um telefonema, um imail, uma chamada de zap

podem ser o suficiente para provocar um incêndio

de proporções inimagináveis

a cronologia é uma prisão da qual escapamos juntos

e à qual jamais regressaremos.

 

nuno g.

Crato, 03 de dezembro de 2020.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Tororó, por Claudia Rejanne.

Tororó
estelar
continente paragua
afluente kariry açu
açude junco
mãe jaguar
arribe
caudasjorrou
machu pichu
amazonara
jara
já lá
jord AUM

Kakituramba veio de lá
no clarão do fogo e do rapé
dançou, cantou, comemorou
no baile matinal dos curumins


Claudia Rejanne.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

ESPERANDO UN POEMA, Luljeta Lleshanaku

Estoy esperando un poema,
algo agreste, ni elaborado ni fuera de control,
algo imperturbable por las ofensas, un cuervo blanco
liberado de la oscuridad.

Las palabras que vienen naturalmente, sin apuntarle a nada,
una bala sin un blanco,
tiros de advertencia al cielo
en tierras recién ocupadas.

Un poema que brote de mi pecho

Y hasta que llegue
escucharé a mis hijos peleando en el cuarto de al lado
y arrojaré mi mirada a lo largo de la mesa
a un vaso de leche vacío
con un trazo de blanco alrededor del borde
mi cuello envuelto en plata
una servilleta en un aro servilletero
esperando que arriben los tardíos invitados...

Luljeta Lleshanaku

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Ilha do desterro.

Célia foi minha professora de datilografia,
Bia era irmã dela e
Lúcia, sua melhor amiga.

sonhei com o Martim do clube de forró,
com o Manoel Gonçalves da cerâmica e
com Sara - só ela segue viva.

Hoje é a data que Maria nasceu,
cinco para uma da tarde,
Valle de Bravo - México.

Se eu fosse Bandeira,
teria aqui o suficiente para um poema,
mas não sou e estou desde as cinco esperando o telefone atender para cantar as mañanitas.

O poema se chamaria ilha do desterro.
teria cheiro de rio e a beleza de Bia.
teria gosto de rio e a coragem de Lúcia.
teria textura de rio e a seriedade de Célia.

O poema seria o vasto rio onde corre toda a saudade do mundo.
e até Bandeira teria que reconhecer que entre a Sina e o Nada transcorrem nossas vidas.

Ontem fui à praia do Montecristo,
onde deságua este poema no mar,
escrevi nas areias teu nome, Maria,
e ainda que uma noite de mil anos nos atravesse,
nem o vento, nem as águas, nem as mãos da imprudência,
serão capazes de apagar.

nuno g.
23 de novembro.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

rosário de estrelas ou os passos de Ana na escuridão

para meus avós,

  Depois de tanto tempo sem chuva restava pouca gente no povoado, quase nada. A neta e o avô escarafunchavam o barro das ideias reinventando as estrelas, soletrando os mistérios de suas crenças enquanto tratavam de cozinhar um pouco de milho e algo do feijão que ainda tinham. Faziam render o de comer escaldando a farinha nas águas noturnas da fé. Os peitos da menina saltavam como rãs, seus olhos vagavam como moscas e sua inteligência desafiava o comum que lhe arrodeava. O velho era espinho, era raio seco de sol, era sombra de juazeiro, era réstia empoeirada na rede do alpendre. Depois de tanto tempo sem chuva restavam apenas eles dois na casa grande da Timbaúba. O calorão aumentava, a fome ameaçava e a espinha dos dias se assanhava no sopro do vento que arrebanhava as últimas esperanças. Dessa vez não chegou governo, nunca havia chegado. Ainda umas últimas arribaçãs estendidas, sal entranhado nas asas esturricadas de orações sem memórias. Quando crescesse um tanto mais iriam ao mar: fazer carneiros de areia, ouvir quebrantar de ondas, conhecer as sereias de Homero. Enquanto não, se contentavam com o azeite das lamparinas. Com o rastrear de alguma raposa. E faziam fogo todas as tardes com as folhas secas de afugentar serpentes e víboras que passavam acolá. A brisa deliciava o corpo desidratado da neta, o avô sabia que já passava da hora e só temia que findasse antes. Tomava um trago e ruminava um inverno. Uma chuva grande, um pasto verde e a lembrança das graúnas na cerca. A morte se aproximava desfazendo qualquer aura e as querências da menina iam tomando a forma de feridas exiladas. O corpo não acompanhava o passo, a velha aflorava antes da mulher, em cada gesto renunciava suas misérias. A menina era órfã, seus pais se perderam no asfalto. A história era longa e o tempo minguava, nem boi nem boiada e os corações reconheciam-se em cada migalha de palavra, em cada cigarro de palha, naqueles afetos e silêncios sem mágoas que se prolongavam. O velho era o único que sabia de tudo, mas já era velho. Seu cavalo arquejava a alma. Os ossos dos tejos eram belos quando as mãos da menina os tocavam. Fabricava com eles sinfonias inesperadas, louvava a deus e à natureza, recriava o mundo e por pouco que fora tocava a sombra esquálida. Havia amor demais naquela sede retirada. Havia um tudo que já insinuava o nada. Era clareira muita que naqueles seres se escancarava. O temor as vezes os desabrigava. O rio tinha margens largas onde vez ou outra uma onça ainda se avistava. O velho era água que morria regando a flor que desabrochava. Nessa transferência de energia tudo se ia transformando, se refazendo a estouros de espoleta, rebentando como as borboletas que escapavam de um pigarro. As lembranças eram demasiadas, o tempo era escasso. O velho já sabia que não veria as novas águas, que não estaria ao seu lado quando sangrasse. A morte deixou de lado seu hábito enigmático e se revelou como um fato: acrescentando um quilo mais no alforje já bem pesado. Um dia antes de partir pensou romper o arco, relembrar os ecos dessa passagem luminosa, quebrantar o véu inquebrantável. Sua graça lhe mantém em pé o quanto falta. E quando ela dorme ele se transforma em anjo e com suas lágrimas enche novamente o oceano onde a menina irá pastorear carneiros quando for tão tarde.

  Saiu com parecenças à avó. O jeito de destorcer os punhos traz muito da velha. Quando se deixa desacorrentar miragens percebe a desordem com que tudo passa. É avassaladora a fúria com que se acalma e vai vertendo suas meticulosidades. A menina sabe o que o velho sabe. Que mão tão essa acaricia o ventre, sana a chaga, e vai levando o desconhecido para o outro lado. No vazio se ocupam de uns dados ou de um par de cartas a uns ciganos comprados. Feitiços de um destino bem amarrado. Reviravolta desmanchada numa madrugada. Os lençóis amanhecem lagos. O velho fraqueja, a chuva tarda. Ainda há feijão. Ainda há milho. Uma que outra caça no mato. As pedras dessa igreja nasceram a meio passo. Entre chocalhos e badalos iam se refinando, auscultando o pulso, revisando os cascos. Houve um tempo em que tempo não havia, era só a ardência infinita se estendendo no planalto. Mas esse tempo só se transfigurava em tempo quando se assentava, quando decantado ia se definindo à ribeira em paragem. Era um tempo salpicado, tinha cheiro de café recém passado e suas fronteiras eram a vertigem do inominado. Neste tempo reinava o acaso, neste tempo se movia sem medo o impulso do abutre acossado. Neste tempo se ouvia o canto assinalado. Era o tempo morto de onde a vida brotava. Era o tempo anterior. O tempo escasso, desritmado. Sem escalas, sem compassos: alguma música para ouvidos nada delicados. E foi assim que tudo foi sendo semeado. Foi assim que a origem foi ganhando sua máscara parda, sua singela insígnia acinzentada. E no meio de tudo havia uma lágrima. E no desemboucadeiro um oceano com muitos carneiros. Antes do velho outro velho já chorava. Antes da lágrima outra lágrima. Por essa vereda iam as venerações da menina. Sua solidão seria terrível se não fosse sagrada. Mastigando aquele caldo de misticismos e outras constelações minerais seguia sua relação de presságios. Afinal de contas, a vida é uma estância, sem razão pra ser desagradável, sem intuição que lhe restitua a intenção de onde parte e desarvora. O cavalo do velho arquejava, a alma se reentranhava na carne. Grilo ou outro o sangue anunciava. As rãs e as moscas celebravam sua orgia, a menina parecia cada vez mais com uma coruja e tudo ao seu redor escurecia para que ela pudesse faiscar. Saiu com parecenças a avó é certo, catava os grãos traçando espirais, assassinando desvios desnecessários. 

  Um dia ela destrincha o redemoinho, pressente o velho, sem espanto nem teimosia de rinhas. Um dia ela... o corpo além desse céu tão arranhado, tudo sendo pressentido, rememorado. Um dia ela também conhecerá o diabo, suas artimanhas e pertencimentos, ela vai lograr, da carência a querescência é um salto, fácil para uma rã que tem os artefatos nítidos. Um dia ela me enterra, afaga meu repouso, atraca minha erva. Um dia ela vai ver o mar como ele é, o oceano dos carneiros pálidos, o fogo sempre termina por incendiar o arco. Era mania do velho pressentir assim tão memorioso e grávido. Já era arqueiro e arco. A menina será mais e será menos, será raiz e será galho, será bicho e será rastro, será sempre o que desde sempre foi: lua em movimento, astro... Ainda que se esforce não alcançará o sangue, será de outro o destino de abrasar essa intempérie que irrompe baixo a chita. Qual náufrago tentará suportar seu lastro, qual desânimo inquietará sua paciência? Coisas como essas povoando a madrugada beira, esses estilos arrebatados que a calmaria fresca desperta. A brasa acesa devorando a palha do cigarro, café já tantas vezes requentado no barro, amor de si buscando forças para o outro que ainda cisma e insiste em ser pássaro que vem ajudar o pensamento a romper a casca. Ela dormia. Dormia como se nada. E pode um peixe viver fora d’água? Pode árvore se esticar sem raiz? Já não sabia quase nada. Na verdade nunca soube muito. Sempre foi mais de pressentir. De ruminar. Cultivar suas próprias venerações. Dessas lógicas aparentadas do sangue. O outro lado era dela. O outro lado era pedra. O outro lado ia aparecendo nas rugas de sua testa. Barco perdido bem carregado – como se deixou ceifar por essa banalidade insólita? Nunca se sabe até que ponto um nome determina a arte. O dela era Ana, nome de santa; o dele: Estevão, nome de pirata. O sertão era vasto mais ainda mais vasto era seu barco. Desolado remeteu o pé contra a parede e embalou as cismas que àquela hora já se faziam confusas embora mansas, como os sentidos de quando voltava da casa das putas, como a cabeça de um jovem que herda uma herança, como uma mosca que sabe o desejo que arde no salto preciso da língua faminta do anfíbio, como uma iminência parda. Três colheradas de uma coalhada um tanto azeda. Pedaço de queijo seco. Talagada de cachaça. Velho não dorme, abundância de cavilações e espreitas. Quem iria preparar a terra quando chegassem as águas? Os anjos por certo, os mesmos anjos que agora lhe devolviam o sono. Assim lhe agarrou a tala e tudo que pressentira se fez fumaça. O velho dormiu como despertara, com uma leve sensação de que o que se percebe nunca se instala, que o deserto sempre está mais próximo que se desejara. A única certeza é que a menina sangraria no mesmo porto em que seu coração estancara. Ausência por ausência o sono foi se tecendo na casa. Ela era o que ele recordara. A chuva chegava com a mansidão dos gatos. Sereno. Neblina. Chuvisco. E enxurrada. Lágrima vai lágrima vem o suco vermelho foi inundando a casa. Primeiro parecia sonho depois trovoada. Animal que sangra tem suas próprias teimosias. Conhece outras insistências. Deflagra querências de outra linha. O marasmo chega de outra forma. A boca beija com outra ânsia. A morte se vê diferente. Tão certo como lição de tabuada, acendeu a vela e bebeu a lágrima. Era a primeira vez de tudo, a primeira vez que chorava. Sangrava pela primeira vez. Com as mãos suaves enterrava o velho nas penas de galinha que recheavam a almofada. Jogou a aguardente que sobrara sobre a pele sem voz. Perdeu a maciez das mãos cavando à terra pedregosa uma cova rasa. Deitou o velho na cama de piçarra. Já não tinha mais nada que fazer ali, a chuva era para os outros que retornavam. Botou roupa de ir à rua, cobriu tudo com atmosfera de domingo e deixou pra trás o que restava. Se voltaria não alcançava saber. Sentia que ia. Que era inevitável partir. Sabia que a morte era meia-irmã do amor. Assim como a vida... assim como o horror...

  Os bicos dos seios já salivavam, os cabelos exigiam suas carícias. A estrada era larga, profunda. A vila era pequena e desprovida de promessas. Um vazio entre tantos outros, um santo morto entre os demais. Alguma fagulha de não se sabe o quê naquele carro que ia por lá manhã e à tarde regressava. O resto era o resto que nunca assumia alívios, nunca dizia sensatezes. O resto era o que pouco-a-pouco definhava. Quando beijou o pé da estátua sentiu amargar o céu da boca e cuspiu sem refletir. Toda a gente lhe olhava sem poder compreender. Era simples demais para tudo aquilo, era complexa demais para tão pouco. Os sapos já coaxavam alegrias pelo lago e as moscas pululavam feira em feira sem ressaibos. Um dia voltaria onde enterrara o velho. Flor na mão, vento na alma. Um dia voltaria à casa. O amargo desceu garganta abaixo com ossos revirados. Trocou os panos que aparavam o sangue, juntou os trapos que lhe deixaram, subiu na boléia da camionete e foi até o mais longe onde chegara. Tudo era estranho e alheio. As pessoas andavam como andavam. Os carros eram muitos. As casas não eram casas. Eram espigas de cimento ensimesmadas. Não se viam varandas não se arrastavam aqueles dizeres salpicados. Mas tinha algo de bom, de aprazível, em viver sem nenhuma amenidade. Tinha algo do que o velho chamaria o outro lado. Algo de desterro, algo de hemisfério, algo alumiado. Foi assim que foi o que foi. E o que foi era o que desde sempre tinha de ser. Foi assim que ela foi se vendo cidade. Foi se sendo outra menina. Foi matando o velho como quem mata uma sina. As rãs foram criando asas, a flecha farejando o alvo. Vez ou outra recordava as boiadas, os ciganos e as aves de arribaçãs. Mas já era dialeto outro o que alfabetizava seu corpo, o coro dos anjos desafinados descontentava seus acentos. E nessas marés de lembranças não se deixava enganar, a delicadeza era bela por ser violenta, o corpo sangrava para seguir vivo e com lágrimas foi inventando o mar. O primeiro homem acolheu como um carneiro. Apascentou-lhe. Sem juras nem confusões entregou-lhe o que lhe devia e retirou dele o que necessitava. Não perdia tempo escutando algaravias. Tinha juízo. Tinha amor. Tinha criado mais de mil insônias na imaginação. O carneiro era fresco e saiu dali carregado de felicidade. Ainda quis outra vez mais já era tarde, a relva estava mais além de sua imperícia. Com um deus no ventre Ana se abriu à tempestade. Se fez luz ao novo abrigo que surgia. Com aqueles passos leves de não acordar a noite foi seguindo sua travessia. E quem sabe as tantas línguas de que são capazes um corpo sabe também que a cada uma delas corresponde um abutre. A cidade se fez mais tranqüila por um instante. O sangue parou de escorrer por um bom tempo. O carneiro ainda insistiu mas a imensidão do céu se fez muito intensa para sua ira. Sonhou com o silêncio do velho e havia mais sons naquele silêncio que nos passos apressados da multidão. Sonhou com a vila, triste e melancólica vila de azulejos. Tudo era uma questão de chão. Ali estavam as estrelas, os planetas e o clarão da escuridão. Tudo era uma questão de estômago. De vísceras. A vida era um retiro, um desterro: fagulha de um sonho na escuridão... Um pouco de vinho, um pouco de pão. Foi o suficiente para chegar até ali. Foi o suficiente para adormecer como se não fosse órfã, como se não tivesse cicatrizes no joelho, como se o sol não fosse uma perpétua maldição.        

nuno g.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

sonho.

Despertei no Jaguaribe,

na ilhota para ser preciso.

Trazia às mãos umas unhas verdes,

compridas e bem feitas.

Um boiadeiro tangia umas vacas,

à sombra da ponte as garças e um cágado.

Havia uma feira dentro da água,

muitos violeiros, muitas putas e uns cães.

Um arco-íris na direção do Quixeré,

uma escuridão pros lados das Baraúnas.

Acordei mais surdo,

o tempo cobra – nestes tempos até os juros sabem à chumbo.

Cuscuz com ovo & café com leite.

Benjamin regressou. Desentupimos as bocas do fogão.

Tudo indica que esse ano não encontrará seu término em dezembro.


Já é novembro e a chuva não cessa:

é a terra chorando as águas do futuro... 


nuno g.


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

fósseis

para ângela calou,

onde antes a terra
escura e imberbe
agora os seres sedimentados

o mundo feito mais curto
de forma abrupta
e o horizonte subitamente estreitado

as cismas, as fagulhas, as artimanhas
e tudo o que deixa toda partida
a espreita do cego e o sêmen da fumaça

onde antes a descrença
com o sem sabor da virilidade extrema
e o escárnio metamorfoseando-se perpetuamente em cansaço

é na matéria que a memória se grava
tal qual o trono, artefato fósforo
e o céu azul que já não esconde de quê nos protege

o sono, o vento, a cordilheira
o velho maltrapilho e suas flores que curam
amarelo-milho aceso na névoa que a ti reluz e salva

onde antes a seiva dos mortos
agora a sombra da fé
e a imagem mimética dos seres sedimentados

onde antes a vulcânica palavra
vermelha e cálida
agora o silêncio angelical,

Maria acordou, me chama, eu vou.

nuno g.
Toróró, 20 de outubro de 2020

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

máquina de moer recordações

recolhemos os farelos de ódio à sombra
e onde antes as grandes perguntas
agora só a mesquinharia burocrática dos torpes
a miséria do espírito se propaga vertiginosamente
e nós tentamos retirar nossas cabeças do berço da guilhotina
Eles nos guiam. Eles nos exigem a fé.
o intolerável está por todos os lados.
meus olhos de gavião não apodrecem nem mesmo depois de terem morrido incontáveis vezes.
excluímos juntos qualquer saudade do dicionário.
também excluímos tudo o que já não estivera vivo no canto das onças.
recolhemos os farelos de ódio à sombra.
mastigamos carvão.
e como numa película ainda inédita
atravessamos o umbral e todas as conversações que mantem os mortos entre si.
do outro lado a pedra angular e o fundamento do Tempo.
a ferida de Silvio, o miado de Judite.
O sono de Maria.
recolhemos todas as mentiras que nos contaram.
recolhemos todas as calúnias e difamações que sofremos.
recolhemos todas as sementes que não frutificaram.
seja pela aridez do solo.
seja pela imperícia das mãos.
recolhemos os farelos no alforje.
vimos as caças passeando no jardim.
abandonamos os moribundos nos leitos hospitalares.
recolhemos o silêncio que não prescreve.
os desejos que não cessam.
as feridas que não curam.
os amores que não chegam.
compramos veneno para piolhos. compramos sexo nos confessionários.
e rezamos ao silício para que não nos traga mais nenhuma novidade.
qualquer farelo nos basta nesta hora de provação.
no alento do mito gravita o futuro desta civilização que se enterra com as próprias mãos.


nuno g.
Toróró, 21 de outubro do fim do mundo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

voto de pobreza - a mala.

Raimundo era padre, vivia em Minas.
Todos os anos vinha nos visitar.
Minha avó, sua cunhada, cozinhava doce de ameixa.
Comíamos com banana batida a garfo.
Ele me ensinou a ler e escrever cartas.
E a olhar as estrelas depois do jantar.
Era o único em que ele e o irmão, meu avô, coincidiam.
Os dois olhavam estrelas após a janta.
Todos os anos Raimundo trazia uma velha mala.
Voltava sempre com uma nova, presente familiar.
No outro ano regressava com uma mala ainda mais velha.
Raimundo morreu atropelado.
E até hoje espero religiosamente suas cartas.

nuno g.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

luto.

 A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará manifesta profundo pesar com o falecimento de Raimundo Aniceto, o mestre Raimundo Aniceto, integrante da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, do município do Crato, uma das mais importantes formações da cultura tradicional popular no Ceará e no Brasil. A Secult se solidariza com os integrantes da banda, com os familiares e amigos de mestre Antônio e com tantos quantos se acostumaram a aplaudi-lo, no sem-número de apresentações que sempre combinaram música e dança, tradição e presente, intensidade e alegria.

O toque do primeiro pife da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, comandado pelo Mestre Antônio, jamais será esquecido. Junto ao seu irmão, Antonio Aniceto, e a seus sobrinhos, Mestre Raimundo seguiu se apresentando até pouco tempo, desfilando destreza no pife e na dança, na elegância dos uniformes de cores vivas, na tradição secular das bandas cabaçais. Sempre em movimento, deixando como legado a descoberta e a admiração despertadas em novas gerações, graças à continuidade do trabalho dos Irmãos Aniceto.

Mestre Antônio  se despediu aos 86 anos, foi responsável por manter viva uma das mais belas e marcantes expressões da cultura cearense, estando sempre pronto para transmitir conhecimentos e compartilhar histórias e vivências. Assim foi, por exemplo, com os novos integrantes da banda-mirim dos Irmãos Aniceto, reunindo garotos da comunidade, unidos e encantados pelo poder da tradição, da música, da brincadeira. Tudo com a simplicidade e a gentileza que sempre caracterizaram a presença do grupo, em inúmeras apresentações e em eventos especiais, como o Encontro Mestres do Mundo.

Contribuir para que os Irmãos Aniceto sigam adiante e tenham repercussão cada vez mais ampliada para sua obra é a melhor forma de homenagear Mestre Raimundo. Nosso agradecimento, mestre, por toda uma vida dedicada à cultura cearense.


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

poesia.

Porque assim como há fantasmas que parecem remédios, 
assim há remédios que parecem fantasmas. 
Cousa notável, que o mesmo que lhes metia medo como perigo, 
os livrou da tempestade como remédio.
Padre Antônio Vieira

chegou aqui e mergulhou o que sou nas águas do silêncio.
sobreviverei a isso e esse é meu único temor real: meu único medo que não é imaginário.

não quero mais estar aqui, faz tempo.
a minha vida foi sempre uma luta corporal contra o luto, estou exausto.

tenho tanto apreço pelos meus contemporâneos quanto os vampiros ao alho.
eles só querem que isso passe, eu só quero ir à grande Aldeia.
nada nos une, nenhum nó nos ata.

nos próximos dicionários deveria se escrever dinheiro onde se lê alma.
não creio em amor, creio em Maria - ela também veio do que antecede o nada.

tem gente que escreve com palavras.
só sei escrever com as vísceras.
e quando escrevo silêncio, águas, mata, 
é uma forma de orar.
é uma vela amarela que acendo.
é um pedido que faço.

não quero ser condenado a sobreviver ao fim do mundo.
com ter que ser e estar entre meus contemporâneos é uma punição que já basta.

os que me pensam pessimista estão longe.
os que não me pensam quase me agradam.

quando escrevo serpente invoco o veneno que ao parecer remédio é fantasma.
quando escrevo nada o que quero dizer é tempestade.

nuno g.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Eliana e as onças

Eliana suicidou.

Ou como dizia Raimundo,

distraída que era saiu de casa pela janela.

Prefiro acreditar que conseguiu voar.

Trazia no sangue o sangue das onças.

Eu sei quando as ouço cantar.

Eu sei quando as vejo em procissão.

Acendo os vaga-lumes.

E não esqueço.

Eliana suicidou.

E quando em súplicas lhe atribuíram milagres.

Voltaram a violentá-la.

Crucificada outra vez como o índio de Chiapas.

De quem retiraram a infância para ter um Cristo à imagem e semelhança.

Os azulejos azuis, outra violência.

A ausência à lápide, mais violência.

O rosto tão branco quanto o leite.

E a voz das onças pousada ao ombro.

Subindo e descendo a escada espiralada.

Acendo os vaga-lumes.

A vela aos mortos e aos suicidados.

O vento entra.

É primavera.

Da janela: o juazeiro, a jurema, o dendê.

Ou como diria Raimundo,

a trindade vegetal.

Prefiro acreditar que conseguirei voar.


nuno g.

Toróró, 23/09/20

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O ano do infinito

                                                                                              para Maria,

Sete vezes dançaram os praiás sobre a coroa de sua cabeça.

Sete vezes cruzamos os sete rios sem que as águas nos molhassem.

Sete cânticos o jaguar encantado nos presenteou.

Nossa pele por sete fogos atravessada.

Às vésperas do oceano, do sal e do infinito.

Deixando as árvores se desfolharem.

Segurando às mãos a flor sem pétalas.

E ouvindo o tempo.

Sentindo o tempo.

Sabendo a tempo.

Sete vezes dançaram os praiás sobre a coroa de minha cabeça.

Sete rios nos cruzaram sem nos molhar.

Sete jaguares nos cantaram.

Sete fogos atravessaram nossa pele.

Às vésperas do oceano, do sal e do infinito.

Deixando as folhas se libertarem das árvores.

Segurando às mãos as pétalas sem flor.

Sendo ouvido pelo tempo.

Sendo sentido pelo tempo.

Sendo conhecido pelo tempo.

Sabendo que nada sabemos.

Que somos menos.

E que as onças curam ao cantar.

 

nuno g.

23/09/20

terça-feira, 22 de setembro de 2020

os guardiões da floresta e as ruínas do Asno-mor

Hoje foi dito e assentado na ONU, pelo fascista-mor desta terra, que são os caboclos e os índios os que queimam a mata.
Também foi dito que a mata não queima por ser úmida e que estamos à beira de sermos engolidos pela cristofobia.
Os guardiões escutam. Os da terra, os dos subterrâneos, os dos céus.
A insanidade beira o patético. O que eles querem nunca foi tão claro.
Têm apoio e avançam. Têm as armas e avançam. Têm a doença no coração e avançam.
Mas eles são mortais e passam antes de florescer.
Os índios e os caboclos bem sabem o que é um apocalipse.
Já viveram muitos e souberam guardar boas memórias.
Cristo, por supuesto, faz tempo se fez adepto à pajelança.
Há muito tempo, no livro das sete estrelas, foi assentado.
A insanidade, o patético e a enfermidade passam.
Os índios, os caboclos, as onças e as serpentes não.
As cidades do agronegócio já serão ruínas e se ajuntarão às ruínas de nossas chagas verticais.
Será um tempo longo, duro, difícil.
Mas ainda podemos aprender com as ciências indígenas os ensinamentos caboclos.
Ainda poderemos nos resguardar.
Eles sabem o que é um apocalipse e também sabem que sempre haverá quem guarde a mata das memórias e as clareiras do ser.
Não sabemos nada e sentimos que somos menos.
Que venham os guardiões e que nossa humildade os permita nos guiar.
Onças são para sempre.
Poesia também.
saravá!

nuno g.

domingo, 20 de setembro de 2020

As onças – lição do Jaguaribe

O que eles não sabem é que elas não morrem.

Nem o fogo da cidade branca.

Nem a arma esmaltada e bandeirante.

Nem o hálito pode.

O que eles não sabem é que um dia chove.

E que eles sim morrem.

No Icó tem uma casa encarnada.

O vermelho dela não é tinta.

É sangue de menstruação.

É sangue de sussuarana.

O que eles não sabem é que seus automóveis são uma extensão.

Que seus sonhos de Miami são uma triste reedição.

Dos antigos sonhos dos bárbaros de além-mar.

Sem a valentia. Sem a inocência. Sem a coragem dos primeiros.

O que eles não sabem é que seus apartamentos.

Só servem ao vôo dos gaviões.

Que ao se chocarem contra o chão.

Enfiam olhos adentro a sífilis a gonorreia e a solidão.

Lhes devolvem as escaras do tempo.

E gritam não.

O que eles não sabem é que onças reencarnam.

Eles não.

No Icó tem uma cabeça de touro enterrada.

A maquiagem do shopping não desfaz a escuridão.

Poconé e Araguaia: ódio e salvação.

O que eles não sabem é que onça canta.

Assobia, tripudia, ora.

Tem onça que é de Iemanjá.

Tem onça que é de Iansã.

Tem onça que se basta em sua primitiva santidade.


nuno g.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

sábado, 12 de setembro de 2020

Fantoches, por Francisco Espinhara

Os fantoches da rua Sete 

Seguem cegos na procissão.


A puta diurna da Palma

Traz uma venérea na alma

E uma cova diária na mão.


Da Ponte Velha a secular ferrugem

Reticente ao trajeto branco da nuvem

Come o estrado, o arco, o vergão.


Os poetas esquecidos no beco

Transam sangue a trago seco

Dormem como trapos sobre o chão.


Recife, musa, maldição

Cadela suja, traiçoeira

Seta certeira

Encantada cidade do cão.


Francisco Espinhara

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

flores siberianas, por Patti Smith

Flores siberianas são rosadas

como o bracelete de uma filha

pálido penhoar

postado contra uma janela

que não mais desse vista

Há sangue em toda parte

privado de sua cor de sangue

E o rosto do amor é nada

além da brancura do inverno

cobrindo a colina

abeto e pinheiro

gamo e galhada

tudo soprado

e no entanto desejamos

Dois olhos negros

Uma cabeça curvada

Uma coroa caída


Patti Smith

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A alfabetização do éter

Meu pai por fim morreu.

Mais de trinta anos depois de seu corpo ter sido abatido como um bicho.

 

Naquela noite não dormi e saí às quatro e meia da manhã em busca de cigarros.

Fazia um frio intenso e não havia nada na rua.

Nem cães. Nem vendedores de tacos. Nem vendedoras de flautas douradas.

Encontrei numa cantina às margens do lago e voltei fazendo fumaça.

Passos rápidos. Uma viatura de polícia. O carro do lixo.

À minha espera um quarto em paz profunda.

O sono das mulheres depois do milagre.

 

A paz profunda do corpo de meu pai no bagageiro do avião.

Finalmente.

Mais de trinta anos depois.

Sentei na escadinha onde minha avó estivera sentada sete dias atrás.

O corpo no bagageiro do avião como anos antes o corpo de minha mãe.

Belém-Recife-Fortaleza.

Não lembro se havia lua no céu.

Não lembro de sentir frio apesar do tanto de frio que fazia.

Só a paz do sono pós-parto.

O cigarro entre os dedos.

E o silêncio que sempre antecede o amanhecer nos pueblos mexicanos.  

 

A morte sorrindo com a boca atascada de pimenta.

Don Abel Hernández segurando a alça do caixão.

Embarcando o corpo no avião.

Sob o olhar assustado dos policiais do aeroporto.

E o silêncio que antecede o tiro do caçador contra o corpo da cegonha que traz os bebês.

E eu ali. Parado. Fumando.

Na mesma escada em que minha vó esteve sete dias atrás.

Enterrando meu pai na mesma cova onde estava enterrada minha mãe.

Esperando o dia amanhecer para escutar a canção que Maria, recém nascida, entoaria.

 

O alfabeto escrevendo com éter o destino num último instante de calmaria.


nuno g.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

recife

nunca foi exatamente uma cidade

uma rocha na água, uma pedra coberta de sal

nunca foi exatamente um lugar

uma memória de uma memória apagada

algo feito do que antecede a palavra

recife,

sempre sucedida por uma vírgula

uma queda e outra queda e

tubarões lendários e interdição

recife,

só tempo sem densidade

calabouço de reticências e reticências e sal

nunca foi exatamente um carnaval

recife,

sem trocadilhos

sem marasmo

um cinema

um rio

uma farmácia

uma queda que não cessa

recife é uma fenda dentro

              uma fenda que separa o músculo do osso

a carne da alma

nunca foi exatamente um porto

nem uma estação ferroviária

recife,

marco zero de uma falta


nuno g.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O poeta e a freira

 À memória de José Alcides Pinto e Deolindo Tavares

 

O poeta sem descendentes me toca a porta.

Estou no banheiro e tenho papel higiênico às mãos.

A freira, sifilítica, pronuncia jaculatórias que, como círculos de fumaça, não se fecham.

Estou no banheiro e o poeta sem descendentes não tem tempo para esperas.

A freira, sifilítica, toca seu sexo como se nele houvesse ainda a fenda da salvação.

Deus é o abismo insondável, como esse papel sujo de fezes.

Deus é o inominável, como a freira em sua loucura erótica com navios e piratas.

O poeta me chuta a porta.

Entra na casa sem permissão.

Vasculha cada canto da jaula.

A freira, sifilítica e anoréxica, o convida à ceia.

Os dois comem pássaros vivos.

Deus, à guilhotina, como uma barata austríaca enfeitiçada.

Enquanto o rio corre para algum lugar depois do fim do mundo.

A casa, feito chamas, torna mais bela a colina.

Nos parapeitos, vestígios das cabras e dos cigarros.

A freira goza, canções de suplícios e máquinas de devorar leões.

Sua face é tão atrativa quanto as ruas.

E nada, apenas o nada, sobrevive no interior de seu hálito.

O poeta vomita as flores do seu próprio aniversário.

Entre elas as cabeças dos pássaros degolados.

Entre elas meus sonhos de depois de amanhã e de nunca mais.

Não paro de pensar em Bernardo e em sua busca da própria alma.

Ele a escondeu dos maus e agora já não a encontra.

Traz sobre nós a vantagem de saber tê-la perdido.

No inferno isso é uma sabedoria.

Os cães latem. Maria dorme.

O tempo oscila entre a angústia e a epifania.

O poeta quebra os vidros das janelas.

Retira do bolso as receitas dos psiquiatras.

A casa escurece.

A luz se refugia nos cabelos e nas unhas.

A freira, frente ao cadáver, emudece.

Só o rio é indiferente.

Só a pedra não esquece o rumo da reza.

O amargo é o único refúgio do sagrado:

por isso é tão triste o último trago de café.

 

nuno g.

Cachoeira, 12 de agosto de 2020.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

La casa, Stella Díaz Varín

Dejaban mi cabellera colgando desde el tronco de la puerta como trofeo.
Sin precedente en la historia de los indios manantiales,
y una cuenca abierta, para la mirada
de los ojos indiscretos colocada a la acera del abismo...
Y esta era mi morada.
Una víbora, encerrada en la jaula,
destinada a cualquier pájaro,
y una piedra caída temporalmente desde la cima,
una piedra nómade en busca de aventuras servía de puerta,
de mesa de comedor. ..

Qué queréis que se haga con estos materiales.
Nada. Sino escribir poesía melancólica.

Acaso, cuando la noche se despierte
debajo de los murciélagos,
no haya otra cosa sino una sensación,
y a estas vertientes
que a uno le aparecen desde el fondo de los ojos.

No haya
sino un alud de hijos de piedra,
de hijas de agua de hijos de árboles.

Entonces escribiré mi biografía
al uso de los poetas indecisos.
Miraré a través de una llama de cobalto
y distinguiré objetos olvidados;
como cuando dormía adosada a la pared
y todo parecía bello sin serlo.
Tomaré una de mis pequeñas flautas colgantes
y entonaré la canción del amor.

sábado, 8 de agosto de 2020

Luto

A Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso, Brasil), a Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos) e a Ordem de Santo Agostinho (Agostinianos) comunicam o falecimento Dom Pedro Casaldáliga Pla, CMF, Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso) e Missionário Claretiano, ocorrido neste dia 08 de agosto de 2020 às 9:40 horas (horário de Brasília), na cidade de Batatais, estado de São Paulo, Brasil.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Fragmento de "O homem da mão seca", Adélia Prado.

Séria fratura,

rigoroso  inquérito.

Fora com os narradores performáticos,

que venham os maus poetas verdadeiros,

a honesta mediocridade:

Feliz Natal para todos

E um Ano Novo de prosperidade.

E ande a carroça. Devagar mas ande.


Adélia Prado

sexta-feira, 31 de julho de 2020

O mais bonito de todos os ofícios



para uma amiga filósofa, 
em seu refúgio de insurretas cartas

Houve um tempo em que todas as manhãs eles acordavam e sentavam em algum canto à espera de pessoas que queriam dizer algo. Elas chegavam, às vezes envergonhadas outras vezes desaforadas, e lhes diziam o que queriam dizer. Eles traduziam aquilo em palavras, botavam os pontos precisos para impor o ritmo necessário, envelopavam e recebiam o pago. Esse tempo não existe mais, todos agora acreditam ser capazes de dizer por si mesmo o que querem: é um tempo de tristeza e de completo divórcio com a realidade. Escrever uma carta é saber fingir, com tanta intensidade que se chega a sentir que o que se escreve resiste à pesada acareação com o que se sente de fato. Escrever uma carta é se esquecer que quando se escreve deixamos que fale o que somos, o que vive em silêncio e reclusão, o que é ao mesmo tempo travessia e muralha. O tempo, numa carta, é sempre outro. Nunca se deixa alcançar: nele toda perseguição é frustrada. Agora, que todos creem saber dizer de si por si mesmo não encontramos mais esses homens que ao escrever nossas cartas nos revelavam. Ficaram mais pobre os amores, menos pesados os lutos e as experiências foram perdendo suas intensidades. A arte do fingimento é em tudo o oposto da mentira e da vulgaridade. A palavra água deve molhar, a palavra fogo deve queimar, a palavra incenso deve perfumar e a palavra serpente só faz sentido se capaz de envenenar. Ouvi dizer que por aí andam a medir as cartas contando os caracteres que as compõem: nada mais ilustrativo da miséria que habitamos. Escrever cartas é como abrir uma oferenda – deve seguir certos preceitos, deve se abandonar certos pudores tão necessários no cotidiano. A mensagem é sempre o que menos importa – ela se resolve com a linguagem ordinária. Sei que não faltará quem me reprove e afirme que esse ofício se extinguiu com a alfabetização em massa e sei também que sim muitos que buscavam esse serviço o faziam por não dominar a arte da escrita. Mas não é desses que eu falo, não são esses o que aqui importam. Falo daqueles que sabiam que o que sentiam e desejavam dizer estava além das palavras que traziam semeadas. Falo daqueles que não sabiam fingir e que buscavam na imaginação alheia o fingimento necessário à toda verdade. E sim, toda mentira tem na verdade sua própria condição de possibilidade. Ou como me disse uma amiga filósofa: a mentira é uma exigência da verdade. Assim como a urgência e o desespero são exigências da serenidade. Que tempo triste em que ninguém oferece sua imaginação ao outro, sua capacidade de fingir e sua perícia em tentar dizer o que, por definição, não pode ser jamais dito. Quando se escreve uma carta o que menos importa é o que se quer dizer: isso se pode fazer de qualquer jeito. Uma carta exige uma forma, exige uma maneira, exige um estilo. Como qualquer lágrima exige o sal ou qualquer chuva uma alegria. As cartas são na verdade a prova mais cabal que estamos vivos. Os fingimentos que nelas forjamos são o que nos permitem seguir. Se ainda houvessem pessoas e cartas não haveria tanta reclamação sobre ficar em casa por tanto tempo e rapidamente descobriríamos que não é tão mal estarmos juntos a nós mesmos. Se ainda houvessem esses que nos traduzem e se tivéssemos a humildade de reconhecer que não somos capazes, recorreríamos a eles para que nos dissessem com suas palavras, com seus sinais de pontuação e com todos os outros apetrechos do universo da gramática. Ser escritor em nosso tempo é isso: escrever cartas impossíveis para pessoas que não existem mais. É acordar bem cedo, olhar o céu e escrever o amanhecer para que a morte se demore um pouco mais a chegar. É mais comum do que se pensa escrever uma palavra enquanto se sente outra, por isso cada escritor tem seu próprio dicionário. Para uns chuva é alegria, para outros: tristeza. Antes, quando não se sabia como associar as duas coisas era só buscar ajuda com quem com toda energia a essa tarefa se dedicava. Esses já não existem mais e as pessoas agora recorrem aos livros de autoajuda que não são livros nem ajudam ninguém: só engordam as contas bancárias dos farsantes que os escrevem e a arrogância dos fascistas que os tomam por literatura. O mais bonito de todos os ofícios já não existe mais: todos agora acreditam que são capazes de sentir o que dizem e se vestem com trajes de inocências como se fossemos capazes de sentir sem os necessários fingimentos que exige toda e qualquer verdade. O mais bonito de todos os ofícios já não existe mais, vivemos um tempo de completo divórcio com o imaginário instituinte de toda e qualquer realidade: ao nos desfazermos dos fingimentos imaginários tornamos impossível e inalcançável a autenticidade das experiências e substituímos o poético e as angústias que nos são necessárias pelas inutilidades amontoadas nas prateleiras das livrarias contemporâneas. Toda carta é um pressentimento: a beleza daquele ofício, que já não existe mais, consistia em não nos deixar esquecer que não é possível existir, sem a mentira, nenhuma verdade.

nuno g.
Cachoeira, 31 de julho de 2020

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Luto de classes


Nas pandemias, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Nas crises econômicas, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Nas pandemias, como no cotidiano: quem tem privilégios se resguarda, pobres são enterrados.
Pandemias não são guerras: essa é só uma metáfora abusiva e gasta.
Nas guerras, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Nas guerras, nas pandemias, no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
No fascismo, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Amanhã nos noticiários teremos tudo junto e misturado:
Pandemia, crise, fascismo e guerra,
como no cotidiano:
Ricos seguirão sobrevivendo.
Pobres seguirão sendo enterrados.

nuno g.
Cachoeira, 23 de julho de 2020.

sábado, 18 de julho de 2020

Teoria de um casarão do século XIX – sem nostalgia.

o banzo é uma transcendência diante dos traumas seculares
Davi Nunes

Ela lê os livros que a descobrem.
Ela lê os livros que a revelam.
Ela se lê nos livros que lhe dizem sobre não perder tempo.
Nem tudo é esquecimento.
Nem tudo é árvore.
Ela sente no corpo as sílabas que lhe pronunciam.
Ela sabe não haver mais salvação.
Ela sente na língua o sal do atlântico.
Ela se corrói, se revira e salta.
Ela vai se geografando savana – aqui não.
Ela vai, ainda que sem bússola, revisitando os fichamentos que lhe servem de mapa.
Ela é mais que ela.
Ela é ela e sua linhagem.
Ela está junta a seus ancestrais.
Nua, ouvindo jazz, ilhada.
Ela sabe que lá fora existe uma arma apontada desejando sua cabeça.
Ela sabe que lá fora existe um falo apontado desejando seu desejo.
Ela sabe que na solidão deste quarto respira uma saída.
Ela desarma a armadilha e corta os pulsos.
Ela é sua única herança.
E a cada página a miséria fica para trás.

nuno g.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Lá, por Ayla Andrade

Saudade eu sinto de nada. Saudade nem da palavra saudade. Não tenho saudade de pessoas. Nem gosto de pessoas. Nem de cartas.
Saudade eu tenho de outro tempo que eu sabia que não era feliz, mas achava que era. Achar que era feliz era a minha máxima. Era pelo menos real. A certeza de não ser feliz e permanecer achando.
Como aquele dia na praia, no sempre-verão da cidade, dias a fio arranjando como chegar no mar e de lá nunca mais sair.
Nunca mais sair é a nova regra do viver e de permanecer vivo. Permanecer por causa das pessoas de quem nem sou fã.
Fico em casa por mim mesma. Eu, a rede e esse trabalho incessante e desnecessário que me arranjaram mas que me garante o sustento.

No fim a gente vai morrer em casa, com o armário cheio de comida e com lembrança de uma saudade vaga.

Ayla Andrade

terça-feira, 7 de julho de 2020

CONSCIÊNCIA, por Renato Suttana

Dormem bem (é o que dizem)
os que têm a consciência limpa.
Também já tive a consciência limpa,
agora a tenho vazia —
o que não impede que, a cada noite,
eu continue a chafurdar na insônia.

Têm um sono de pedra (é o que dizem)
os que respeitam os ditames
da moral e vivem segundo as conveniências
da razão. Mas isso não impede...
Por ora só tenho esta consciência vazia
e, em todas as noites, a insônia.

(O dia lá fora é frio e cinzento
e enfarruscado de norte a sul,
com ameaça de chuva:
é inverno, e inverno
em todos os quadrantes.)

Dormem como dormem os peixes,
porque têm a consciência tranquila.
Também já a tive tranquila,
agora a tenho vazia,
o que não é nenhuma vantagem.
(O que não impede que, a cada noite, eu me afunde na insônia
e role de encontro
a grandes massas de pensamentos imprestáveis.)

Dormem como dormem as pedras,
mas isso nada tem a ver com consciência.

Renato Suttana

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Lúcifer, o encantado

Saudade mesmo sinto é das palavras que as pessoas escreviam nas cartas. Hoje, já não existem mais pessoas, já não existem mais cartas – o tempo sim existe, esse deus miserável que por temor ao próprio destino segue engolindo os próprios filhos como os mágicos de circo outrora engoliam fogo-fátuo. Saudade é como um dente podre implorando pra ser arrancado: ser poeta é aguentar nos ombros até a beleza de um cadáver. Não de um cadáver qualquer. Um cadáver de velho tem obrigação de trazer paz. Pelo que viveu. Pelo que sonhou. Pela ameaça que seria o futuro caso seguisse se recusando a ir ao outro lado, a regressar à morada originária. Ser poeta é aguentar nos ombros a beleza do cadáver de uma criança morta. Não te olhando. Não te chorando. Não te pedindo mais nada. Saudade sinto é das coisas que nunca vivi e que sei não me estarem reservadas. Nunca tive tanta comida no armário e posso ficar dias a fio sem fazer nada. Saudade sinto é das rezas, dos cânticos, das ladainhas e da falta de misericórdia que alegrava nossas mais terríveis madrugadas. Ouço o asno do vizinho. Ouço as galinhas da casa de farinha. Desligo o telefone. Os cães latem. Saudade eu sinto é do meu irmão Claudio. O resto tá perfeito. Não ter que ir à universidade. Não ter que escutar professores universitários. Não ter que fazer nada. Quando o mundo some só nos resta a vontade. Já enterrei dois filhos. Já enterrei pai e mãe. Já enterrei avô e avó. Já enterrei meu primo mais próximo. Sou especialista em enterrar cadáveres. Saudade eu tenho de quando fascista era um ser raro: um substantivo pesado, quase-excluído do dicionário. Do que mais sinto saudade é do ato profano de ter saudade. De vagar no labirinto de livros à procura de uma libélula solitária. Os amigos estão bem. Tenho saudade da chuva e do direito de destruir aquários: libertar as esponjas, as algas e todos os seres de sal aprisionados. Não tenho saudades de nada. Amo a casa que vivo. Amo o corpo que tenho. E quando me dizem adeus sou profundamente grato. Não há nada que me faça sair deste campo esférico que habito: o nada me respira, o nunca me pertence e o jamais é dom e é graça. As flores desconhecem a saudade, os espinhos também. Minhas mãos foram feitas para empunhar pás de areia / para enterrar entes queridos – a iluminação destes versos me acompanha: como me acompanham os tapuias jaguaribanos e o árido e inclemente sol do sertão de minha infância. Estamos cercados de trogloditas armados e isso não muda nada. Estamos cercados de impiedade e isso não quer dizer nada. A intolerância é um mais entre tantos signos com os quais fomos ferrados: e sim somos apenas um rebanho mais entre tantos outros. As nossas vacinas não serão capazes de extinguir as colmeias de vírus da terra: graças aos deuses, já exterminamos demasiadas espécies, já acumulamos demasiado karma. Agradeço a onipresença do café. Agradeço a onipotência do amargo. Agradeço a onisciência do insólito. Sei que agora sabemos que somos menos e só nos resta fazer deste mantra nossa nova forma de oração: o resto é sabotagem e desconsideração.

nuno g.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Para o ano dos loucos, por Anne Sexton

uma oração

Ai Maria, mãezinha frágil,
escuta-me, escuta-me agora
ainda que eu não saiba tuas palavras.
O rosário negro com o Cristo prateado
repousa profano em minha mão
pois sou a incrédula.
Cada conta dura e redonda entre meus dedos
é um anjinho negro.
Ai Maria, permite-me essa graça,
essa travessia,
ainda que eu seja feia,
submersa em meu próprio passado
e minha própria loucura.
Embora haja cadeiras,
estou deitada no chão.
Apenas minhas mãos estão vivas,
tocando as contas.
Palavra por palavra, tropeço.
Iniciante ainda, sinto tua boca tocar a minha.

Conto as contas como ondas,
martelando sobre mim.
Perco a conta, desanimo com o número delas,
doente, doente do calor do verão
e a janela acima de mim
é minha única ouvinte, meu ser acanhado.
Ela aceita tudo, me conforta.
Ela é a que dá alento,
e murmura,
bafejando os largos pulmões como um peixe enorme.

Cada vez mais perto,
chega a hora da minha morte
enquanto rearrumo meu rosto, retrocedo,
regrido, meu cabelo fica liso.
Tudo isso é morte.
Na mente há uma viela estreita chamada morte
e passo por ali como se estivesse n’ água.
Meu corpo é inútil.
Jaz imóvel, enrolado como um cachorro no tapete.
Entregou os pontos.
Não há palavras senão as aprendidas pela metade,
o Ave Maria e o cheia de graça.
Agora iniciei o ano sem palavras.
Noto a entrada esquisita e a voltagem exata.
Elas existem sem palavras.
Sem palavras pode-se tocar o pão
e receber nas mãos o pão,
sem som algum.

Ai Maria, médica afável,
vem com pós e ervas,
pois estou no centro.
É bem pequeno e o ar é cinzento,
como numa casa de máquinas
Passam-me o vinho como a uma criança dão o leite.
É ofertado num cálice delicado,
bojudo e de bordas finas.
O vinho em si é cor de piche, mosto e secreto.
O cálice ergue-se sozinho rumo à minha boca
e só percebo e entendo tudo isso
porque acontece.

Tenho medo de tossir
mas não falo,
medo de chuva, medo do cavaleiro
que entra galopando em minha boca.
O cálice entorna por si só
e estou em fogo.
Vejo dois filetes que descem queimando meu queixo.
Vejo-me como se fosse outra.
Fui cortada em duas.

Ai Maria, abre tuas pálpebras.
Estou nos domínios do silêncio,
o reino dos loucos e dos sonâmbulos.
Há sangue aqui
e eu o comi.
Ai mãe do ventre,
vim apenas em busca de sangue?
Ai mãezinha,
estou em meu juízo perfeito,
estou trancada na casa errada.

Anne Sexton
(agosto de 1963)
tradução: Renato Marques de Oliveira

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Proyecto de un beso- Leopoldo María Panero

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra.
Te mataré mañana poco antes del alba
cuando estés en el lecho, perdida entre los sueños
y será como cópula o semen en los labios
como beso o abrazo, o como acción de gracias.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra
y en el pico me traiga la orden de tu muerte
que será como beso o como acción de gracias
o como una oración porque el día no salga.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y ladre el tercer perro en la hora novena
en el décimo árbol sin hojas ya ni savia
que nadie sabe ya por qué está en pie en la tierra.

Te mataré mañana cuando caiga la hoja
decimotercera al suelo de miseria
y serás tú una hoja o algún tordo pálido
que vuelve en el secreto remoto de la tarde.

Te mataré mañana, y pedirás perdón
por esa carne obscena, por ese sexo oscuro
que va a tener por falo el brillo de este hierro
que va a tener por beso el sepulcro, el olvido.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y verás cómo eres de bella cuando muerta
toda llena de flores, y los brazos cruzados
y los labios cerrados como cuando rezabas
o cuando me implorabas otra vez la palabra.

Te mataré mañana cuando la luna salga,
y al salir de aquel cielo que dicen las leyendas
pedirás ya mañana por mí y mi salvación.

Te mataré mañana cuando la luna salga
cuando veas a un ángel armado de una daga
desnudo y en silencio frente a tu cama pálida.

Te mataré mañana y verás que eyaculas
cuando pase aquel frío por entre tus dos piernas.

Te mataré mañana cuando la luna salga
te mataré mañana y amaré tu fantasma
y correré a tu tumba las noches en que ardan
de nuevo en ese falo tembloroso que tengo
los ensueños del sexo, los misterios del semen
y será así tu lápida para mí el primer lecho
para soñar con dioses, y árboles, y madres
para jugar también con los dados de noche.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra.

Leopoldo María Panero
Poema del libro El último hombre, 1984.

sábado, 27 de junho de 2020

Serenidade, por Leopoldo María Panero

                        Para Martin Heidegger

Só há duas coisas : o meu rosto desfigurado
e a dureza da pedra.
A consciência só se acende
quando o ser é contra ela:
e é assim que todo o conhecimento
e a matriz de toda a figura
é uma ferida,
e só quem chora
é imortal.
E a noite, mãe da sabedoria,
tem a forma inacabável do pranto.

Leopoldo María Panero
tradução: Luis Costa

sexta-feira, 19 de junho de 2020

***

Del amor sólo queda el cuerpo:
Una biología vigorosa y atractiva
con la que me solazo y sueño

En vez de amor tengo poemas
por quienes ser feliz y ser sufrido
los rememoro en mi intimidad
presiento su llegada a mi vida
los maldigo cuando no se entregan
recuerdo siempre cómo han venido

Amor es algo que aprendí en Platón
y en él quemé una larga adolescencia
en la que casi siempre se mostró esquivo
Mas en ese tiempo no sabía de poemas
y mi alma incompleta necesitaba alguien
para ser ella un todo consigo misma
Escribía cartas para que me amaran
ahora amo a los otros en mí y escribo

raúl gomez jattin

domingo, 14 de junho de 2020

5000


São esses os mortos contados no Ceará até agora.
Sabemos que esse número é menor, muito menor que o de fato.
Ontem trezentos fascistas tentaram invadir o congresso nacional.
Ninguém foi preso, ninguém foi morto, ninguém foi espancado.
É que entre eles não havia ninguém que fosse alvo.
Anteontem outros fascistas invadiram hospitais.
A mando do Asno-mor, autoproclamado tirano desta republiqueta infernal.
Ninguém foi preso, ninguém foi morto, ninguém foi espancado.
É que entre eles não havia alvo.
Um jovem é espancado na periferia de São Paulo.
O filho de uma empregada doméstica cai de uma torre no Recife.
Um estudante negro “suspeito” de roubar um carro é preso em Salvador:
Ele não sabia dirigir e foi sequestrado quando voltava da caixa onde foi receber os famigerados seiscentos reais.
Ninguém vai ser preso, ninguém vai ser morto, ninguém vai ser espancado.
São só notícias banais: é só a rotina desta nossa republiqueta infernal.
O ministro da economia faz a contabilidade: com os anciãos mortos ele zera o déficit da previdência social.
O ministro da justiça faz a contabilidade: com os mortos da favela ele equaliza a mão de obra de reserva e diminui o exército de desempregados que poderia levar adiante uma revolução indesejada.
O ministro da educação desfila sua ignorância pelas ruas de Brasília: selfies alegóricas para uma triste posteridade.
Os shoppings estão abertos, as igrejas evangélicas também.
O ministro da saúde escova a farda e amontoa nos gabinetes mais militares: todos especializados em pandemias e problemas sanitários.
O Kuarup foi cancelado: os pajés sabem que os mortos podem esperar – a memória da peste é sábia conselheira.
Com alguma sorte faz sol, dá praia, e na falta de algo melhor vamos todos desfilar nosso racismo, nossa truculência, nossa infinita devoção à barbárie.
Perco o sono e passo a noite em claro pensando: como daqui a uns anos vamos explicar a nossas crianças que vimos tudo isso acontecer e não fizemos nada.
Com que olhos olharemos nos olhos de nossos filhos quando os olhos deles nos pedirem que nos expliquem como permitimos que o mundo que os legamos fosse ainda pior que o mundo que herdamos.
Até Roberto Jeferson, o canalha ressuscitado, aos quatro ventos brada: anistiamos os militares que nos salvaram e a eles agora recorremos que outra vez nos salvem.
Abro os jornais e vejo: Monica Bergamo, Eliane Cantanhêde e Vera Magalhães esbravejando a torto e a direito como se não houvessem semeado isso.
Silvio Santos, Major Curió, Hermanos Weintraub e Olavo de Carvalho: todos condecorados com medalhas de mérito e honrarias.
O ministro do meio ambiente age rápido: o vírus escancarou a porteira passemos a boiada rapidamente.
Damares, a que vê Jesus em pé de goiaba e que por caridade adotou uma indígena, se emociona ao ver navios militares distribuindo a peste na floresta.
Sim, acabou: já basta.
Chega de ler liberais arrependidos disfarçando que não sabiam de nada.
Chega de fazer de conta que os fascistas não são necessários aos sonhos neoliberais de nossa republiqueta com delírios escravocratas.
É domingo. Faz sol. Não vai dar praia.
O meu temor é não ter palavras quando minha filha crescer e me perguntar:
Papai, você viu tudo isso acontecer e não fez nada?

nuno g.
14 de junho de 2020.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

261

261 cearenses foram enterrados hoje.
Carla Zambelli diz que tinha pedras naqueles caixões.
O asno-mor manda a gente tomar tubaína.
A voz do presidente do supremo no roda-viva dizendo:
democracia é assim mesmo
atravessada na goela.
Sempre tem um túnel no fim da luz: o nome dele é poesia.
Depois que a gente enterra a esperança
a geografia do céu ganha fronteiras que desconhecíamos.
Esperar que tudo volte ao normal é falta de imaginação:
Não existe volta e o que chamávamos de normal está morto.
Amanhã é só o nome que inventamos para a delicada arte de conviver com fantasmas

nuno g..

quinta-feira, 14 de maio de 2020

nós e as divindades

sonhei com o mar e meu pés deixavam uma trilha de pegadas nas areias. havia vento, muito vento. e havia também uma música suave e bela que acompanhava meus passos. eu estava só e só caminhava entre muitos outros. eu olhava o mar e o mar me olhava com seus olhos de sal. sonhei com um mar muito antigo de águas calmas e nesse sonhava eu caminhava com uma serenidade absurda. havia muitas outras pessoas entre os grãos de areia, mas eu estava só. nada afetava minha paz e o fato de saber que elas estavam mortas a muito tempo me tranquilizava. sonhei com o mar e com as tantas léguas que caminhei para chegar até ele. muitas foram as montanhas que ficaram para trás e extensa a várzea que me levou até ele. sonhei com enormes olhos de sal e mil tentáculos. uma música suave e bela acompanhava meus passos. deixei uma trilha de pegadas nas areias e apesar do vento todo que ventava essas marcas não se apagavam. era inverno, fazia frio, apesar do sol a pino. meus dedos eram longos como os de um velho pianista enfeitiçado e nenhum mal me habitava. sonhei com o mar e com todas as distâncias que nos separam. havia cavalos, havia cabras, havia som de chocalhos. meu corpo estava fendido e trespassado por espinhos alaranjados como os raios do sol. na minha boca havia fogo e era doce o fogo. na minha boca havia memória de luas das guerras antigas. na minha boca havia atrocidades em excesso. o mar, o vento, as areias. eu estava só, apesar de todos os que me rodeavam. não sentia cansaço, apesar de saber o tanto que havia caminhado até chegar ali. as feridas em meus pés denunciavam a existência de um longo e tortuoso passado e os meus cílios cintilantes anunciavam que em breve outra alma encarnaria em meu corpo desabitado. fazia sol, mas era frio. havia música e minha imagem não refletia nas águas. havia cavalos com um só corno e cabras que se perdiam admirando a abóbada celestial. era maio, era o mês dos nossos aniversários e de alguma forma eu pressentia que nas funduras de alguma fossa oceânica nossas alegrias haviam se reencontrado: ainda que por um breve e inusitado instante, ainda que não estivéssemos acordados e que nosso hálito conservasse gotículas microscópicas de éter extraviado. era maio e maio sempre foi o mês de nossos aniversários. sonhei com o mar e com enormes olhos de sal aferrados a mil tentáculos. despertei tarde e me alimentei com sementes como me ensinaram os pássaros. revisei as correspondências e acariciei a onça estendida no sofá. agradeci às divindades aquele sonho e tomei mais um café - o amargo é ainda mais delicado quando sonhamos com o mar e despertamos encharcados de sal. arranquei fora os espinhos alaranjados de sol - o amargo é ainda mais delicado quando sonhamos com cabras, cavalos e chocalhos. a serpente veio, me abraçou e nos acariciamos como se a eternidade houvesse finalmente se instalado entre essas ruínas onde acampamos. despertei, me alimentei de sementes como me ensinaram os pássaros e me recolhi na medula óssea do mês de maio. mês de nossos aniversários. mês em que recordo que tudo passa e só por isso seguimos aqui. tomei um último café - e agradeci uma última vez às divindades a existência insólita do amargo.


nuno g.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

quinta-feira, 7 de maio de 2020

quarta-feira, 6 de maio de 2020

A MOITA , por marialice

eu sou uma moita que procura outra moita que achei outra moita que viramos gêmeas
eu e ela procuramos outra moita
FIM

marialice

segunda-feira, 27 de abril de 2020

quarentena


chove e quando chove a terra se alegra
chove e nas águas da chuva vivem as divindades
chove e a suavidade da chuva não oculta a beleza do mundo
chove e faz escuro como nunca antes
chove, filha, e os teus olhos brilham mais que o de costume
chove, filha, e tuas brincadeiras se estendem como os lagartos nos lajedos
chove, filha, e já não sabemos mais se amanhece ou se ainda é madrugada
chove, filha, e na cidade os que até ontem nos abraçavam usam máscaras e nos cumprimentam à distância
chove, filha, e as aldeias onde costumávamos passear estão fechadas pela sabedoria dos que não esquecem de quando a varíola arruinou a vida
chove, filha, e você dorme e sonha com mais um dia de loucuras e aventuras
chove, filha, sobre essa casa que não sendo nossa já é parte do nosso sonho e da nossa semeadura
chove, filha, chove sobre nossos cabelos como choveu um dia sobre a gare de Astapovo
chove como um dia choveu sobre o mar de Neruda
como um dia choveu sobre as pálpebras de Cleópatra
chove e nossos amigos estão enclausurados
chove e seus olhos brilham como duas serpentes que iluminam o futuro
chove e nós não choramos ao ninar teu irmão morto
chove e nós não nos entristecemos ao ninar teu irmão morto
chove e nós acendemos velas, incensos e estrelas no céu
chove e nós alimentamos os cães e aprendemos com Judite a resistir
chove e nós seguimos com nossos planos de viajar por estar terra onde nascemos
de caminhar entre as lhamas do deserto de sal
de escalar as pirâmides relendo os versos da Colorina
chove, os fascistas estão cada dia mais empoderados
o mundo está cada dia mais sinistro e acovardado
os abraços estão suspensos e toda a lógica do tempo foi dissolvida num passe de mágica
chove sobre o vírus da biologia e sobre o fermento da linguagem
sobre os positivistas, os oportunistas e sobre a cova do teu irmão morto
chove e os açudes estão abarrotados
chove e as bibliotecas estão fechadas
chove e as moscas da semana santa não vão embora
chove e nossas línguas são as das serpentes que te acompanham
chove e recordamos os sonhos de São Tomé
chove e recordamos o trem da graciosa
chove e tomamos água de umburana
chove e derramamos um fio de azeite sobre o macarrão com brócolis
chove e não queremos que tudo passe
chove e aprendemos que seria uma estupidez desejar a normalidade
chove e vamos deixando que os animais nos ensinem as artes da nova realidade
chove e a chuva dissolve tudo o que é ridículo e até ontem parecia ser importante
chove e aqui estamos
sem nenhuma noção do tempo
sem nenhuma vontade de fazer de conta que não aconteceu nada
sem nenhum temor às criaturas demoníacas que ameaçam desabar os céus
chove e nós adoramos a chuva como os antigos
chove e nós bebemos as águas da chuva como os antigos
chove e nós limpamos toda a fuligem de asfalto que trazíamos à pele
chove e nós cuidamos de teu irmão morto
chove e nós rimos dos cães destruindo nossos óculos
                                                                       nossos celulares
                                                                       nossa impotência ante o destino
chove e mesmo sob a chuva acendemos o fogo
chove e mesmo sob a chuva adoramos o fogo
chove e mesmo sob a chuva nós tecemos nossa casa de vidro
chove e nós escutamos o que nos diz a chuva
chove e nós veneramos e reverenciamos o que nos sopra o fogo
chove e nós nos aproximamos do que se encontra longe
chove e esta terra nos abraça
chove e este rio nos afaga
chove e rezamos e comemos pipoca e assistimos desenhos animados
chove e nós corremos sob a chuva sem nenhuma veste que oculte a beleza de nossos corpos
chove e nós aceitamos a carícia dos deuses
chove e sorrimos e nos alegramos e agradecemos essa certeza de que nada será como antes
chove e sabemos que os generais planejam matar uma parcela da humanidade
chove e sabemos que nossos pés têm asas e sabem galopar
chove e nossas intimidades guardam a dor preciosa com que se fazem as delicadezas
chove e nós devoramos o que aprendemos a cozinhar
chove e nós vestimos o que aprendemos a tecer
chove e nós sonhamos os medos que perdemos
chove e a chuva nos protege
do vírus, do fascismo e de toda a maldade do mundo
chove e a chuva nos traz os versos que nos ajudam a respirar
chove e a chuva nos traz a memória de um futuro que nos pertencerá
chove sobre a necropolítica e os tiranos amordaçados no porão
chove sobre o silêncio dos cúmplices e sobre a pilha de fariseus amontoados nas cidades
chove sobre as cidades e suas cicatrizes
chove sobre o sangue que pulsa no olhar feroz da coruja branca
chove sobre a ceia imunda dos assassinos de Marielle
chove sobre o luto de Vivian
chove sobre o estandarte de couro onde ferramos o brasão da agônica esperança
filha, chove sobre a cova de teu irmão morto
chove e não posso ir até lá acender sua vela
e não posso ir até lá acender seu incenso
e não posso ir até lá aquecer seu frio
chove e sei que você o tem em seus braços
chove e sei que Vivian o traz em seus braços
chove e sei que os fascistas venceram e
que o sinal está fechado para nós que somos jovens
chove e sei que sim já somos como nossos pais
chove sobre o mistério inescrutável da santíssima Trindade
chove sobre as armas de Ogum Beira-Mar
chove sobre a magia da sereia desse rio que é todos os rios
filha, chove sobre a pele fria dessas víboras que vêm até teus pés
filha, chove sobre estas serpentes que te acompanham como acompanha o sal ao mar
filha, chove sobre nós
sobre nossos desejos
sobre nossas vontades
e como nossos ancestrais somos por esta chuva abençoados
o ar segue alimentando o fogo
e os ossos dos mortos ainda faíscam na memória desta imensidão que nos abriga
filha, o que está ocorrendo não é algo que vá passar
filha, o que está ocorrendo nos atravessa como um raio atravessa uma pedra
filha, o que está ocorrendo também tem sua beleza
também guarda seu ensinamento
também nos ajuda a seguir caminhando em direção ao nada
filha, não haverá mais outro dia como os que haviam antes
as palavras que tínhamos já não tem mais serventia
já não descrevem o que vivemos
                                 o que sentimos
                                 o que pensamos
o jaguar ainda vive – e só ele pode nos fazer sorrir neste silêncio
o jaguar ainda vive – e nele repousa nossa aurora
o jaguar tem hoje a cor de nossos ossos
o jaguar tem hoje a cor dos ossos de nossos mortos
não existe lugar para onde retornar
tudo está contaminado
e fomos nós que contaminamos tudo
mas ainda chove
e a chuva nos traz uma sensação imprevista de fúria e felicidade
a chuva nos traz a memória de homens que a varíola levou aos infernos
a chuva nos traz a memória devastadora da cólera
a chuva nos faz sorrir e desejar que nunca mais nada volte ao normal
a chuva, a neblina, o porvir
a pele do jaguar, as serpentes que te acompanham
e essa doçura com que tu manipulas venenos
nossa impaciência e nossa maneira única de rolar no chão
de tocar a lama
de afastar as moscas que se recusaram a ir depois da semana santa
nossos cães, teu irmão morto e a memória de Janaína que já teria mais de vinte anos
tua gata, a neblina e a esperança que nada volte ao normal
enquanto chove vamos montando nosso lego
estudando os caminhos pelos quais passaremos com nosso carro-casa
desde esse aprazível precipício até a margem indizível onde sete anos atrás enterramos
teu umbigo, tua placenta e todas
as remotas certezas que trouxestes das vidas passadas,
chove sobre nossas fosforescentes carcaças,
chove...

nuno g.
Cachoeira, 27 de abril de 2020