sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Estudo fino das cores ou o nascimento do Roxo.

para Maria Alice, 
para Você, 
para...


Entre o Azul e o Amarelo

Entre o Negro e o Vermelho

No lodaçal do pântano

Entre caranguejos e siris

Entre a lama e a lama

Nasceu o Roxo

E com ele Nanã, a Velha Senhora

E com ele Miguel, o Archanjo

Assim nasceu o Roxo

E com ele o amor de uma geração à outra

E com ele o mangue onde o doce se mescla ao salgado

E com ele os dias em que os seres de Ar assentam

E com garras e dentes

Vão enchendo de barro o lugar onde semearão

Entre o Amarelo e o Azul

Entre o Vermelho e o Negro

Entre os pássaros de todas as cores

Voando em direção à montanha mais alta

Onde se encontra a Árvore do Mundo

Entre as serpentes de todas as cores

Voando em direção à montanha mais antiga

Onde cresce a Árvore do Mundo

De onde brotam como frutas todas as cores do Mundo

O Azul, o Amarelo, o Negro, o Vermelho e o

Roxo.



nuno g.

Toróró, 25 de janeiro de 2022.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Canto à Serpente

me vesti com tuas lágrimas, Verdes

como a mata onde debulhamos as folhas de Tempo,

e subi a ladeira do Sonho

guiado por Ele, Vermelho e Preto

nascido no quando da terra da mata

e subi a ladeira das águas doces, Verdes

como as lágrimas tuas que debulhamos na mata

e me vesti com as folhas de Tempo

guiado por Ele, subi a colina agarrado às contas do santo Rosário

e me ajoelhei aos pés do cruzeiro

erguido no quando da terra da mata

entre as folhas de Tempo e as quedas de águas doces

entre o Sonho, a ladeira, a Serpente e as lágrimas.



nuno g.

Cachoeira, 20 de janeiro de 2022.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Quando tudo era mato



quando tudo era mato

só havia Caminho e Mistério

ainda a Morte

era Caminho era Mistério

quando tudo era mato

e ainda não havia nenhum labirinto

também o Terror

era Caminho e Mistério

quando tudo era mato

nasceu Dan – e com ela todas as cores

quando tudo era mato

tudo era Caminho era Mistério

até que Dan acendeu no coração das águas o fogo

entre o Terror e a Morte

entre o Tempo das coisas que ainda não chegaram

e o Tempo das coisas que não terminaram de dissolver

tudo era mato – Caminho e Mistério

o Terror era o Temor que nos albergava do labirinto da história

a Morte era quem nos acarinhava

e o Nada seguia sendo desconhecido

nossas mãos eram mais singelas

e delas emanava mais amor mais alegria

quando tudo era mato

as escamas do céu

também eram Caminho e Mistério

imenso escudo Azul e Amarelo

nos guardando do labirinto das feras

Dan, enrolada na árvore chamada Tempo

regressava assim aos confins do íntimo

ao Tempo onde tudo era mato

e o Nada não havia ainda

quando tudo era mato

o Povo da Palha se deixava ver

e sua voz se ouvia

quando tudo era mato

as plumas de Dan

reinavam sobre a memória do labirinto

as plumas de cores

entre o fogo e as águas

entre o mato e o mato

entre o Amarelo do ouro e o Azul

entre o Amarelo do mel e o Azul

entre o escudo e os olhos

entre os nossos pequenos sonhos noturnos

e o grande Sonho desse pássaro chamado Noite

que dorme na árvore de Tempo

junto a Dan, a serpente que traz todas as cores

quando tudo volta a ser mato

e ante a inexistência do Nada

tudo volta a ser o que era – Caminho e Mistério:

as escamas coloridas no céu

nos protegem uma vez mais do Terror da história

e do labirinto absurdo onde reina o Nada.



nuno g.

16 de janeiro de 2022.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Vamos gritar Piedade !, por Gaeth Castanheiro

No avesso havia um verso
Uma desavença inversa
Ao verso feito do avesso
Não há preço só há pressa
Só a presa se apressa em fugir
E esse verso feito ferro
Não o ferro de ferir
Mas o ferro de forjar
O ir e vir sempre indo
Sempre lindo
Sempre vindo como quem vai
E esse verso dentro do nosso avesso
Deixa aceso o fogo
Da poesia água
Que lavanda nossa eterna praça
Piedade poesia piedade.

Margareth Castanheiro

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Ciranda

meu coração-criança chora

mas o mundo não está para lágrimas

meu coração-criança grita

mas o tempo não está para gritos

tem muita gente morando nas ruas

tem muito silêncio nadando no rio

mataram meu pai tantas vezes

que já pouco importa

meu coração-criança se devora

mas o tempo e o mundo não estão para isso

peço perdão a deus e agradeço

pelo que não fiz

por não ter invertido o sentido dos versos de São Francisco

meu coração-criança abre janelas e portas

deixa entrar a brisa da madrugada

e o som dos grilos que rezam lá fora

meu coração-criança cansou

mas o mundo e o tempo não estão para cansaços

agradeço a deus e suplico perdão

pelo que não fiz

por não ter invertido os versos de São Francisco

mataram meu pai tantas vezes

que já pouco importa

tem muita fome passeando às ruas

tem muita sede dormindo às praças

meu coração-criança corre

atravessa os jardins da Senhora

mergulha nas espinhas oceânicas

em busca de uma nuvem

para fazer de montaria

meu coração-criança brinca de ser coral entre nenúfares

mas o tempo não está para brincadeiras

e o mundo é mais cortante e perigoso que qualquer coral

meu coração-criança dança

atravessa os labirintos da floresta

seguindo o serpentear da cobra coral

em busca de uma nuvem

para fazer de montaria

meu coração-criança não dorme

tem muita miséria nas cidades

tem muita matéria na memória

tem muita cegueira e densidade

meu coração-criança desperta

fora do mundo, longe do tempo

escala árvores como se fosse um gato

e como um gato escapa na imensidão do firmamento

mataram meu pai tantas vezes

que quase me convenceram que isso nada importa

meu coração-criança não esquece

grita chora e se devora

mas o tempo não está para gritos

nem o mundo está para lágrimas

meu coração-criança se alegra

de não ter invertido os versos de São Francisco

corre brinca dança celebra

ainda sabendo que o tempo não está para isso

meu coração-criança adormece

escala árvores como se fosse uma onça

e, onça que é, desaparece na imensidão Azul do firmamento.

nuno g.
Toróró, 02 de janeiro de 2022.