quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O arco, a serpente e a luz que atravessou a pedra II

Daqui a pouco o dia vai querer raiar
Luis Queiroga & Pedro Luis


A lua estava cheia, mas haviam muitas nuvens no céu.
Papai, a Sussu nunca vai conhecer o tio Edson e a tia Tânia!
O caminho que caminho tantos caminharam que quase não escuto a solidão.
Havia uma serpente no céu. Uma serpente e muitas nuvens.
Certa alegria que é irmã gêmea da resignação.
Mel e escuridão: escuridão e mel.
Como num romance russo do século XIX.
Ou como quando um cão doente se aproxima de um afago.
E a memória das mãos roxas e delicadas que nos criaram com a lama do mangue.
Íshvara pranidhana - Assucena desperta.
Íshvara pranidhana - Alice desperta.
Íshvara pranidhana - o ferimento no olho do Come-e-Dorme começa a cicatrizar.
A lua estava cheia e oculta entre as nuvens de chuva.
As águas chegaram sobre nós. As águas e as escamas da Serpente.
As águas e as lágrimas da vida toda.
Papai, a Sussu nunca vai conhecer o tio Edson e a tia Tânia!
Certa alegria que é irmã gêmea da poesia.
Mel e resignação: escuridão e mel.
O caminho que caminho tantos caminharam que quase escuto a solidão de meus passos.
Como em qualquer romance russo do século XIX.
Apesar do genocídio em Gaza - ou por cada criança morta ali.
Apesar dos fascistas desta terra mergulhados em seus delírios de tristeza e guerra.
Ou, principalmente, pela existência deles.
Como num poema cearense sobre a guerra dos bárbaros.
Sobre colonizadores matando tapuias.
Sobre uma cabeça de touro enterrada sob a igreja da Virgem da Conceição na cidade do Icó.
Senhora da Lama - não esquecei de nós que trazemos as marcas de vossas mãos nos corpos.
Caçador - em tua flecha nossos sonhos.
Caçador - em tua flecha nossa porteira de fogo.
Caçador - em tua flecha nosso caminho de cinzas & cinzas & redenção.
Papai, a Sussu nunca vai conhecer o tio Edson e a tia Tânia!
Senhora dos Ventos - varre, sopra, espanta, aboia.
Haviam muitas nuvens no céu, mas a lua estava cheia.
Íshvara pranidhana - a Serpente desperta, se faz luz e geologia das profundezas da terra.
Certa alegria que é irmã gêmea da guerra.
Ruge a fera. Ruge a sombra.
Ruge o sino assombroso do campanário.
Como em toda a poesia russa do século XIX.
Como em toda a filosofia de Søren Kierkegaard.
Íshvara pranidhana - Bessen desperta.

nuno g.
Toróró, 28 de fevereiro de 2024.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O arco, a serpente e a luz que atravessou a pedra

Se soubesse de onde eu vim, não me sorria

(...)

Agora que sabe, tem medo de mim

Mas no seu lugar, eu também teria

Mc Tha & Jaloo

A verdade nos lábios e a espada afiada cortando as espumas do ar.

Demasiada neblina ao amanhecer.

No rosto de Claudinha a violência que se confunde com a esperança.

A doce verdade nos lábios e o que é justo aqui: gritando e gemendo neste vale de lágrimas.

Come-e-Dorme com grave ferimento no olho.

Lari pinga o colírio e reza.

Que o vento leve hoje todo o ontem e algo do amanhã.

A verdade nos lábios e a espada afiada cortando as espumas do mar.

Na montanha mais alta a morte e os vaga-lumes dançam e brincam com a neve.

Tempo trabalha, corta a carne e as artérias de um corpo que grita e geme.

A voz de Milton inunda a casa.

Assucena quase chora.

Luís semeia a lua amarela e sorridente.

Que o vento corra daqui esse sentimento ruim e sádico.

Que o vento corra daqui essa insanidade masoquista.

Que o vento traga outra vez o sol, a lua e as estrelas.

Tudo cheira à água de eucalipto.

Na montanha mais alta me inclino ao recordar tia Tânia.

Sua alegria, sua energia e seu amor ao dizer à Alice:

A tia vai ficar boa pra brincar com você.

Bastou isso para fixar agradável memória entre pontes e pontes.

E águas de rios correndo entre prédios e prédios e teias de asfalto.

A verdade nos lábios e as saudáveis maneiras de machucar alguém.

Havia muitas cercas de arame farpado.

Mas a morte e os vaga-lumes sempre terminam por cruzar qualquer cerca.

Os olhos de tia Tânia nos olhos de Alice.

Os olhos de tia Helma nos olhos de Alice.

A doce e violenta verdade nos lábios.

A doce e delicada e violenta verdade nos lábios.

O som das tanajuras caindo dos céus.

O som dos passos desta senhora que chamamos Morte.

O vento tangendo pensamentos.

O vento tangendo sentimentos.

O vento tangendo resquícios de um sonho incompreensível.

Na casa de um amigo de infância.

Meu único amigo ali era a casa.

Cheia de rachaduras e infiltrações.

Como meu próprio corpo desabando no corpo do abismo.

Tempo trabalha na longa longa duração.

O sol, a lua e as estrelas giram.

Lari reza e pinga o colírio.

Lavo os olhos com mel.

Três vezes choro no túmulo de Ian.

Recordo tio Edson ao olhar as nuvens.

Gabi me ensina sobre o ódio e sobre a necessidade de estar aqui.

Ainda que aqui seja uma casa cheia de rachaduras e infiltrações.

É a única que tenho. É o corpo que sou. É o lugar onde habito.

E a estrela que me habita ainda não morreu.

E a lua que me habita ainda possui suficiente ternura.

E o sol que me habita lança serpentes de fogo 

que acendem a pedra delicada onde repousa minha dor...


nuno g.

Toróró, 22/02/24.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Içá

Isso é um içá!?

Sim - e lembrei do sítio do pica-pau amarelo entre as cidades mortas.

Hoje caíram tanajuras, não chove - me disse uma velha na fisioterapia; choveu.

Sonhei com a montanha mais alta do mundo.

Só a morte e os vaga-lumes sobreviviam ali.

Quando eu era menina catava içás para minha vó fazer farofa - mas eu não comia.

Depois que a velha falou, uma jovem comentou o mesmo, mas havia nojo em sua voz.

De tudo que Bruno me falou retive a imagem poética do guerreiro que corta o ar com sua espada.

A inutilidade do gesto o torna ainda mais poético.

Em tudo que Gabi me falou havia uma certa sabedoria prática e um amor ao outro que me é estranho.

Impossível não recordar São Francisco de Assis.

Ou certo saber que nos diz que amadurecer é se deixar de lado.

Que gosto terá bunda de tanajura?

No alto dessa montanha do sonho havia um descampado inabitável.

Só a morte e os vaga-lumes se faziam presentes.

Os infortúnios do corpo e da alma são mensageiros de algo.

Só o difícil interessa. Só o amargo desmemoriza.

As coisas que eu gostaria de esquecer nunca serão esquecidas.

Encontro Don Juan onde menos espero.

Em um livro de psicanálise sobre a solidão.

A voz de Lucas invade minha sala com um convite.

As coisas que recordo agora não são da ordem do que pode ser dito.

Alice está longe e está próxima.

Havia nenhuma outra luz na montanha além da dos vaga-lumes.

Lari volta a sangrar. 

Será que as mulheres são ainda mais fascinantes por sangrarem sem morrer?

Thiago de Mello: faz escuro, mas eu sonho.

E sonhar é uma benção.

Ainda quando se perdeu toda uma infância entre pesadelos.

O que eu não terminei de te contar Gabi é que sim houve um tempo em que eu temia a morte.

Temia tanto que evitava dormir, pois todas as noites ela me perseguia em sonhos terríveis.

Isso durou anos - bem mais de uma década.

E nisso vi escoar pelo ralo um tempo precioso da vida.

Depois perdi o medo e, junto com ele, perdi também o amor a esse mundo aqui.

No deserto entendi que os derrotados são sempre os que temem a morte.

Meu avô me repetia algumas coisas todos os dias.

Que ele morreria antes de mim e que eu deveria enterrá-lo e seguir.

Que ele gostaria que isso ocorresse depois dos meus quinze anos.

Que não seria natural ele presenciar minha morte pois isso seria uma perversão da lei natural.

O hálito de álcool não turvava suas palavras.

Nem tudo ocorreu como ele gostaria.

Minha infância terminou quando ele morreu.

Minha solidão é sagrada - e todas as vezes que desacreditei nisso me fodi.

A imagem que retive das falas do Bruno se desdobra à minha frente.

Um guerreiro irado corta o ar com a lâmina afiada de sua espada.

O gesto é ainda mais poético por ser de todo inútil. 

O vaticínio da velha estava errado, choveu.

As bundas das tanajuras sabem à proteína pura.

Aquela montanha mais alta do mundo é o México onde está enterrado a placenta de Alice.

Só a morte e os vaga-lumes parecem ter força de chegar lá outra vez.

Desde o nascimento de Assucena duvido de minha carcaça.

A dor me tirou da estrada. E essa dor se alojou em minha alma.

Sempre fui triste e a alegria sempre me pareceu fútil.

Hoje gostaria de ouvir apenas o silêncio.

A voz da morte. A chuva de tanajuras.

E a melancolica e frágil luminosidade dos vaga-lumes.


nuno g.

Toróró, 21 de fevereiro de 2024.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Quaresma.

A lua amarela em quarto-crescente e as primeiras moscas.

Coração é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Nas nuvens se avistam formas de animais.

Uma tartaruga.

Um capote.

Um urso.

Um galo.

Um avião da panair.

Ouço Mãe Hilda me chamar - é só o resquício do sonho.

Empatamos o derby no último minuto.

Chove. Chove. Chove.

Quatro da manhã, o segurança do Hercílio Luz me escolta:

Onde é que fica a Azul?

Aponta com cara feia e amarrada a fila do check-in.

Na revisão do raio-x a máquina apita uma vez.

Tiro as moedas do bolso.

A máquina apita uma segunda vez.

Tiro mais moedas do bolso.

A máquina apita uma terceira vez.

Tiro a carteira e o cinto.

A máquina não apita.

O que é isso?

Um salame.

Posso conferir?

Sim.

Você pode, por favor, abrir?

Pode abrir você, mas não come.

Saí com um salame desembalado e o cinto quebrado.

Empatamos o derby no último minuto.

Em Belo Horizonte muita neblina atrasa a aterrisagem.

Em Belo Horizonte muita neblina atrasa a decolagem.

Meus ouvidos quase estouram quando chegamos no aeroporto 2 de julho.

Trago a medalha de Gaeth no bolso e uma febre desconhecida.

A raiz e as folhas guardam o silêncio e a guerra.

Todas as árvores guardam suas próprias feridas.

Saudade é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Na febre se vê coisas que se assemelham à coisas.

Me falta permissão para prosseguir.

Me falta permissão para dizer a história dos nãos.

Me falta permissão.

Empatamos o derby no último minuto.

Lua amarela e chuva.

Meus ouvidos prestes a explodir.

Francine envia à Alice foto do parto de uma gata.

Lari me envia uma foto minha com Assucena na janela da casa do Almirante.

Uma febre me engole e mergulha meu corpo num estranho estado de dispersão.

Não fui à Valença, necessitava dormir.

Talvez hoje eu peça. Talvez hoje eu obtenha. Talvez.

Morte é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Silêncio, resguardo, concentração.

Talvez um dia eu tenha a permissão para contar a história dos nãos.

Do circo. Do aniversário. Dos passeios de barco. Dos churrascos.

O inferno das crianças são os adultos.

Sobrevivi a três aeroportos e à história dos nãos.

Com a pedra no peito e a espada no coração.

Assistimos a luneta do tempo com a exuberante Hermila Guedes.

O inferno das crianças são os adultos.

Silêncio é uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Sobrevivi a muitos assassinatos, 47 quaresmas e rios de areias movediças.

O piratinha me aguardava no meio do bambuzal.

Dei na chave e acelerei.

Comprei bolo de laranja e pães em Santo Amaro.

Mergulhado na febre fui sorrindo pela estrada.

Como se o meu corpo fosse estranho à minha consciência.

Os ouvidos completamente tapados.

Os tendões inteiramente inflamados.

A memória do ódio. A memória dos nãos. A desmemória do mundo.

Vagamente recordo de Gaeth comentar sobre os voos da  lufthansa.

Outra vez o avião da panair cruza as nuvens da minha poesia.

Num sonho muito antigo quase me tornei minha mãe e meu pai.

Num sonho muito antigo escutei alguém me chamar.

Num sonho muito antigo tudo era água, fogo e sangue.

Recolho as moedas da bandeja do raio-x do aeroporto.

Faço do xale que Gaeth me emprestou um cinto e sigo.

Amor, faz um cuscuz com ovo, você que é o nordestino.

A ânsia de desejar e o tédio de possuir, livremente adaptado de Arthur Schopenhauer...

Borboletas amarelas. Flores amarelas. Incerta desolação.

Já botei o cuscuz.

Já desço pra fazer os ovos.

A ausência de Alice aqui.

A lembrança de Bruno Tolentino exaltando Cruz & Sousa.

A lembrança de Bruno Tolentino denunciando a mediocridade de Ana Cristina Cesar.

A lembrança de Bruno Tolentino preso por porte de cocaína escrevendo suas baladas.

Vem comer com a gente?

Claro!

Assucena ergue a cabeça buscando a irmã.

Assucena ergue a cabeça e encontra a ausência da irmã.

A lua é uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Lua.

Minha sombra está suficientemente acostumada a devastações.

Nas nuvens vejo apenas recordações de animais que o vento dissipou.

O cheiro do cuscuz sobe as escadas.

A chuva para.

Um dia conto a história dos nãos que me perseguem.

O inferno das crianças são os adultos.

No coração da lua enterrei os primeiros dias da quaresma.

Com suas moscas e suas exigências de jejuns.

O vizinho aumenta o volume do reggae.

A voz de Edson Gomes se espraia sobre o vale.

No livro da morte está a história do samurai negro que conversava com deus.

No livro da morte está a história dos nãos que não tenho permissão para narrar.

Nas paredes do apartamento 102 do edifício Grão-Pará minhas jovens mãos escreveram um dia:

escrevo como os prisioneiros que escrevem nas paredes com sangue e fezes...

Aquele apartamento não existe mais.

Aquele edifício não existe mais.

Aquelas jovens mãos não existem mais.

Somente as baladas sobre a aprendizagem da solidão seguem existindo.

Era uma vez um castelo, um poeta e uma bailarina.

Era uma vez...


Alice levou a lua amarela e o cheiro de Assucena.

Tempo é uma árvore que cresce no coração azul do Mundo.



nuno g.

Toróró, 18 de fevereiro de 2024.



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

domingo de carnaval.

sonhei com uma gig hardcore

os gatos bagunçaram a casa

armamos a rede-berço, finalmente

Sofia não veio, como se esperava

Lari cozinhou comida árabe

Saci mandou fotos de carnaval

motos barulhentas cruzaram o silêncio do Toróró

todos os jornais falando da folia

se catam como piolhos notícias sobre o fascismo nos jornais

se catam como piolhos notícias sobre o fascismo nos jornais

o inominável ainda tenta usar seus crimes para se promover

os sionistas seguem matando crianças sob o silêncio do mundo

sonhei com uma gig hardcore

tempos em que ser jovem era estar no mundo de uma maneira diferente

encontramos Jarbas na 25: me contaram que você ama Nico!

sonhei com o tempo em que ser jovem era ouvir Lou Reed e Patti Smith

entre as plumas e paetês das festas de Momo

fascistas brasileiros fascistas argentinos fascistas israelistas

escorrem como piolhos gordos de sangue humano

Gabi sonhou com um senhor baixinho que tinha 80 anos e aparência de 44

alguns dos sonhos de Gabi me recordam Don Juan

sonhei com o tempo em que ser jovem era ler Don Juan e sonhar com peyote e desertos

sonhei com o tempo em que ser jovem era cultuar Maria Sabina

ser jovem e aparentar feições de velho

ser velho e aparentar feições de jovem

lições primeiras de feitiçaria

mirações sobre a verdadeira natureza de Tempo

todos os enigmas são ilusões dos olhos de quem vê

Assucena despertou - o som do processador fazendo o faláfel

Alice lê Peter Pan

quando elas crescerem existirá algo como uma boa e velha gig punk?

a janela bate, o vento do leste sopra, 

o rio amarronzado pela chuva corre em direção contrária ao mar

os sonhos de Gabi são como um oráculo

dizem para não dizer e ao desvelar encobrem

Alice brinca com Assucena, ela sorri

Sofia não chega, como se esperava

Ignez manda mensagens telepáticas

quando eu era criança eu era muito velho

tão velho quanto meu avô

e agora, quase-a-envelhecer, aflora essa juventude

esses sonhos com uma eterna gig hardcore

e as lembranças das peripécias de Don Juan pelo deserto de Sonora

selvagem é uma das mais lindas palavras do dicionário

e está em extinção

assim como fúria, liberdade e sabedoria

olho Alice

olho Assucena

alguma esperança que nem tudo foi em vão

alguma esperança que ainda haverá fúria, sabedoria e liberdade no futuro

alguma esperança que uma nova juventude rasgará as velhas roupas coloridas

no sonho de Gabi havia uma padaria, uma prisão, maconha e óleo de hortelã

e todas as repressões saltando como rãs num pântano

no sonho de Gabi havia uma promessa

que me fez sonhar novamente com uma eterna gig hardcore

onde a palavra diferença deixava de ser um sobterfúgio à má consciência da opressão

fúrialiberdade sabedoria - sem fascistas no caminho

pai, eu me lembro quando essa boneca caiu do sofá e eu botei um band-aid

pai, a sussu enfiou a cabeça dela entre os dois travesseiros...

espero que minhas filhas também sonhem algum dia com algo parecido às gigs punks

espero que espadas, piratas e castelos façam parte de ser jovem

Lou Reed, Nico, Iggy Pop, Lemmy, Patti Smith,

aquele distante encontro com Luiz Carlos Porto na casa do Henrique Didimo

Ave sangria, as motos rasgam o silêncio do Toróró

Alice embala Assucena na rede-berço

o cheiro da comida árabe sobe a escada

meu braço dói, escrevo escrevo escrevo

e sonho que essas escrituras encontrem lugar no coração da juventude

os gatos bagunçaram a casa

estar só é estar com a multidão silenciada

pai, o nome desse boneco no desenho não era Jarbas,

mas você disse que ele tinha cara de Jarbas e o nome dele ficou Jarbas

sonhei com uma gig punk

e acordei esperançoso de que haverá algo assim quando a juventude tornar a ser jovem

no sonho de Gabi havia um casamento e uma prisão

e havia um senhor baixinho que conhecia os poderes das ervas

e sabia provocar ilusões visuais

ele também estava na gig do meu sonho

assim como o mar verde da Majorlândia de minha juventude

quando eu era tão velho quanto qualquer ancião de oitenta anos...

(...)

pai, essa boneca nunca teve nome...


nuno g.

Toróró, 12 de fevereiro de 2024.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Alzira

Você só tem a si mesmo, à sua dor, à sua fé, à sua morte.

Comida mediterrânea, azeite doce.

O azeite doce está tão caro quanto o ouro!

Adélia. Adélia. Adélia.

Onde está seu coração está também o coração da poesia.

Rua Ceará, Divinópolis, Minas Gerais.

Milton.

Onde está sua voz está também a voz de Deus.

Alice brinca com Sofia, sábado de carnaval.

Assucena dorme.

Hermenegildo, Hermenegildo...

Onde está sua montaria está também a flecha do Sonho.

Vejo o galo da madrugada na televisão.

Os alfaces hoje estão todos ruins.

Chove. Sopra um vento. 

Certos dias sabem a sal e à sede.

Os pássaros descem o rio, maré mais baixa que ontem.

A pregabalina atenua os incômodos da tenossinovite.

Uma estrela rasga o vazio do céu.

Lua nova.

A dor, a fé e a morte.

E a coragem de ir buscar no mais fundo das águas algum horizonte.

Lua nova.

Era uma vez uma ilha...


nuno g.

Toróró, 10/02/24.

Edberto Gonçalves

Gosto igualmente de todos os seus primos, mas eles têm seus pais e suas mães.

Você só tem a mim e à minha morte.

Você só tem à sua vó e à sua morte.

Você só tem essas lágrimas de sangue e sal aprisionadas nos seus olhos.

             * * *

Alice ganhou sua primeira guia.

Assucena olhou olhou olhou.

Arriamos flores, alfazema e amor.

De madrugada choveu.

               * * *

Você só tem a si mesmo e à sua morte.


nuno g.

Toróró, 05 de fevereiro de 2024.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Reencarnação III

Artrose precoce.

Gabriel vaticinou: Assucena e os cães, banda punk.

Assucena e os cães românticos!

O cantador das cousas do porão e seu canto torto feito faca cortando a carne do amanhecer.

Vamos almoçar o quê?

Pode escolher, 

Qualquer prato de qualquer país do mundo que eu busco os ingredientes no fundo do mar.

Artrose precoce. Tendinite. Fé.

O peso do mundo sobre o meu ombro.

O peso do mundo sobre a minha cabeça.

A poesia e essa vaga memória das cousas que não vivi.

A voz de Cristian ao telefone.

A voz de Zaine ao telefone.

O sonho do Recife. O elevador dos funcionários. A esquina.

Os insuportáveis vizinhos da praia de Boa Viagem.

A estranha recordação de quando eu tinha apenas seis meses na praia de Piedade.

Os cães românticos e o horizonte...

Reencarnação II

para bia,


Uma xícara de café amargo e vaga lembrança de tia Helma.

Mucuripe à voz do cantador das cousas do porão.

Seus cabelos loiros em Olinda e suas palavras e todas as suspeitas pulsando em meu coração.

Dona Antonia regressou dos exames e alçou a bandeira branca no terreiro.

O pé de seu Antonio segue cicatrizando devagarzinho.

Cobra de olho de vidro e escamas coloridas.

Val plantando feijão. Nato brincando com Assucena.

Alice lendo poemas sobre sorvetes e decepções.

Teu pai tá doido!

Doido nasci, sou.

Quarta-feira, de hoje a oito cinzas.

Quarta-feira, ventanias ciganas e fogos da justiça.

As vésperas me comovem e me reviram por dentro.

Uma xícara de café, uma gata no cio, nuvens tangendo fevereiro.

Ignez não foi às classes.

Vi uma foto de Bia com Inaê ao colo.

Senti saudade imensa e vontade de estar junto um segundo.

Ela também está envelhecendo!

Tem só três anos a menos que eu...

Luís desce a ladeira da casa do Almirante.

Vento e fogo / fogo e vento.

A primeira oferenda a Tempo, a última também.

Bel lava as louças e seu Elias caminha em direção ao infinito.

O rio nos olha, maré baixa, ilhas expostas como esqueletos de um lagarto sem plumas.

Rinoceronte norte-coreano cruzando a estrada.

Serpente de olhos de vidro e coloridas escamas.

Vi uma foto de Inaê no colo de Bia.

Senti imensa saudade e vontade de estar junto um minuto.

Ela está envelhecendo.

Dois filhos, professora dedicada e muita vida escorrendo entre os cabelos...

Reencarnação.

Alice e Ignez descobriram que são peruanas.

Irmãs separadas no berço.

Assucena sonha enquanto Jonas, a lagartixa, rumina desacontecimentos.

Sonhei com Recife mais uma vez.

Elevador dos anti-sociais, vizinhos bêbados e uma socialite insuportável.

Esquina do Nada com o Nada.

Lari sonhando com a força do parto, com a força do sexo, com a força do amor.

Vozão estreiou com vitória na copa nossa.

Papai, nas próximas encarnações quero ser:

Gato da Francine.

Cachorro do tio Claudio.

Vaca na Índia.

O carnaval está chegando e nada recorda isso.

Alice e Ignez descobriram que Santiago é colombiano.

Mas que não está preparado para saber.

Os homens tardam mais, se demoram, divagam.

Os primeiros quarenta anos são somente para abrir os olhos.

Alice sonha.

A hora da terapia de Lari se aproxima como Jonas se aproxima da cumeeira da casa.

Filha, em alguma reencarnação passada fui um indío tapuia no vale do Jaguaribe.

Vi os colonizadores chegarem.

Estive quando da traição e das emboscadas.

Recordo a cabeça de touro enterrada sob a igreja da Virgem na cidade do Icó.

Papai, você tem mesmo esses olhinhos indígenas...

Entrou um espinho de jurema no meu calcanhar.

Alice improvisou uma pinça com duas facas e o extraiu.

Assucena sonha.

E Hermenegildo nos sorri da estrada.


nuno g.

Toróró, 07 de fevereiro de 2024.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Promessa.

para Lari y as Marias,


Aqui não é Macondo.

Aqui não é Comala.

Aqui tudo é sonho, ossos e pressentimento.

Aqui tudo se torna água e rio.

Aqui tudo é pedra e memória da pedra e do fogo.

Aqui o amor reina soberano e canta e dança.

Aqui tudo é cura e perdão.

Aqui o esquecimento não encontra chão.

Aqui tudo é Luz e a sombra das sombras encontra seu caminho.

Aqui todas as cicatrizes ganham formas belas.

Aqui o pesado se dissolve e as nuvens brilham e cintilam e se transfiguram em saber.

Aqui a morte nos abraça como uma velha amiga.

Aqui os deuses se encontram e celebram à maneira antiga.

Com seus vinhos, seus mistérios e seus oráculos.

Aqui toda a maldade é varrida pelos ventos.

Aqui a beleza reina soberana e canta e dança.

Aqui ofertamos milho branco, inhame e mel.

Aqui reverenciamos nossos ancestrais.

Aqui os perdoamos e com eles comemos com as mãos.

Aqui Tempo reina e suas árvores crescem e dão frutos.

Aqui não existe chão para o esquecimento.

Aqui tudo é cura e perdão.

Aqui o desespero se encontra com seu caminho e o labirinto deixa de existir.

Aqui é Luz, sonho, ossos e a imensa imaginação das ruínas.

Aqui é casa e terra firme.

Aqui tudo é despertar e amor e amor e amor e ternura.


nuno g.

Toróró, 02 de fevereiro de 2024.