quarta-feira, 23 de novembro de 2022

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

crônica cachoeirana II

Dona Antônia regressou de Feira.

Feijão preto na panela de barro.

Batata-doce arrancada da terra.

O moço da coelba veio ler o registro: 144 reais.

O muro do vizinho segue crescendo.

O mundo vai se estreitando e a visão das pessoas também.

Hora de fazer as voltas-de-rua.

Exames clínicos, pagamentos bancários, escutar o rio.

É novembro: mês do aniversário de Maria, Raquel e Benício.

Lembrei do olho de peixe e da casinha verde.

Ignez foi encontrar o bisavô que saiu do hospital.

Benção mãe Hilda.

Entre os cavalos e os autistas existe algo.

Ana Júlia, tenho pensado bastante em você.

Em você e em Cora Coralina.

Na areia da Faceira tem é coisa escrita.

Os mais antigos à frente.

Existe um abismo imenso entre o olhar e o ver.

Nova nota do exército nos noticiários.

Os militares tupiniquins seguem aferrados às suas raízes podres.

Como um junkie à seringa.

Ou um pinto ao mar de lama e merda.

Os guaranis paraguaios não esquecem.

Todos os exames negativos.

Poesia é caminho.

Macaxeira cozida sem sal.

Imensidão.


nuno g.

Toróró, 11/11/22

crônica cachoeirana.

Ignez e Santi não foram à escola.

Bernardinho todo um cavalheiro, como sempre.

Duas carteiras de camel, por favor.

E seu Ivo suspirando por uma espanhola de vinte anos atrás.

O fósforo, por gentileza.

E o taxista resmungando:

Deus é uma pessoa tão nobre que não se mete na vida de seu ninguém.

Léo sorrindo na ladeira.

Valentina sorrindo na casa de farinha.

Procurando o Come-e-Dorme com o olhar.

O cabelo todo arrumado.

O caminhão do lixo chega: 07:10.

A água da embasa nada.

As contas e ameaças de corte não atrasam.

É novembro: mês dos mortos e de Nossa Senhora D'Ajuda.

A charanga está afinada.

Os filhotes da Pina brincam na casa.

Larissa dorme.

Maria está a caminho da escola.

O cuscuz no vapor do fogo.

Escrever é destino.

Imensidão.


nuno g.

Toróró, 11/11/22

domingo, 6 de novembro de 2022

Ora-pro-nóbis

I.

quando eu crescer vou ser governadora da Bahia

quando eu crescer vou ser arquiteta, youtuber e organizadora de festa,

voltou a repetir Olívia antes da febre.


Sonhei com um morcego me mordendo a coxa numa lagoa de Salvador.

Dico punk me deu uma muda de ora-pro-nóbis.

Tia Nalva leu seus contos mais uma vez.

Maria comeu lasanha.

Conversei com o rio.

Ele me narrou histórias ciganas.

Ele me narrou a história de um anjo muito poderoso e de suas guerras.

O telefone tocou.

O telefone voltou a tocar.

Quando o suco de limão chegou eu estava quase chorando.

Meus olhos liam a dedicatória de Gleyza.

Meus olhos liam os agradecimentos de Gleyza.

Duas chamadas perdidas: 85.

Maria me lê enquanto escrevo.

Boceja, ainda em despertar.

pai, eu quero meu pai.

Um pássaro canta.

Pai, vem ver isso.

Ele ficou louco.

O muro.

Pai, vem ver isso que desilusão.

O vizinho ficou louco.

Ele está mesmo fazendo um muro.

Nós não temos muro.

Temos cerca-viva.

Plantei a muda de ora-pro-nóbis.

E desejei melhoras a Olívia.


II.


A muda, em verdade, era três.

Plantamos as três.

Não esquecer de lembrar.

Às vezes a gramática retorce destinos.

Ele me respondeu

E aí?

Só me passou o número da secretária para resolver tudo com ela

Não sei

A terceira camada era sobre aspiração humana ao inquebrantável.

E todas as lições dos metais e do underground.

É mesmo nos subterrâneos que floresce o entendimento das coisas da ordem do Sutil.

Muitas outras coisas me atravessaram.

Mas não convém falar delas aqui.

Isso não é um diário -- é um dicionário.

Um dicionário de medos imaginários enfrentando-se a uma fé inteiramente selvagem.


III.


Ofertamos flores do Curiaxito à Senhora do Rio.

Cobra-coral.


nuno g.

05/11/22

sábado, 5 de novembro de 2022

motörhead.

 I.


Sonhei que Gleizer me visitava de surpresa.

Sonhar com alegrias não é coisa nada boa, me disse dona Antônia.

A cidade engarrafada como os pensamentos na minha cabeça.

Francisca foi mordida por um mico.

Se não escrevo, enlouqueço.

Lari dorme de ressaca.

O caminhão de materiais de construção atropela a paz da manhã.

Maria come cream cracker com manteiga.

E tenta aprender a atirar de arco-e-flecha.

O dia está nublado como os pensamentos na minha cabeça.

Se não escrevo, enlouqueço.

A cidade está cheia de pessoas.

E muitas delas tem cabeças de formiga.

Sonhar com alegrias não é coisa boa, repetiu dona Antônia.

A gira não para.


II.


Ontem teve atabaques na praça.

Palavras de esperança & sorrisos.

Crianças brincando e a charanga d'Ajuda.

O brinquedo ficou na casa de Olívia.

A névoa aqui - em nossos desbotados corações.

A gira segue.


III.


A placenta de Maria tinha forma de coração e cor esbranquiçada.

Excesso de cálcio.

Excesso de tempo no útero.

O trem, os ônibus e as pessoas com cabeças de formiga engarrafaram a ponte.

Sete pães de sal e duas broas, por favor.

A fascista espanhola fugiu pra gringa.

O vizinho da frente decidiu construir um muro.

Lari desce a escada.

Maria tosse e joga no celular.

Dick, o cão, devora a ração dos gatos.

a gira, Gira.


IV.



(...)


Quer um café?

Não.

Toma um própolis.

Se eu tomar eu vomito.


(...)


Não esqueço a cigana que anteviu e nos anunciou a morte de Ian.

Quase dezembro.

As macaxeiras crescem.

As bananeiras crescem.

Os jerimuns crescem.

As laranjeiras, os limoeiros, os abacateiros crescem.

Só o baobá não resistiu.

À umidade.

Ou à ausência de uma serpente a lhe ceder chão.


(...)


Maria brinca de correr puxando uma linha para que Garfield a persiga.

É tempo de lagartas de fogo, muitas.

Como as flores de maturis dos tabuleiros cearenses.


(...)


Encontrei a agente de saúde que João mordeu semana passada.

Passa bem.

Sanhaçu.


V.


Chove.

Sobre o agora e sobre o ontem.

Sobre as coisas estranhas do agora.

Sobre as coisas estranhas de ontem.

Cada um de nós tem uma digital distinta.

literalmente, papai,

eu vejo minha digital

quando eu era pequena eu pensava que eu estava doente

por causa da digital

eu achava a digital estranha

eu via esse círculo no meu dedo e eu:

oxe!

Chove.

Sobre o agora e sobre o amanhã.

O brinquedo ficou na casa de Olívia.

Iremos lá daqui a pouco.

O que aconteceu ontem feriu.

Não lembrar de esquecer.

Às vezes a gramática traça destinos. 


VI.



Estou considerado não ir.

Quando tocou pra Senhora de Roxo você começou a chorar.

Quando tocou pra Senhora dos Raios você parou de chorar.

Maria chama no skype.

Nada atende.

A força da vida é maior que a nossa imaginação.

A razão atende a uma diminuta parcela da existência.

Belchior na vitrola.

A felicidade é uma arma quente.

É óbvio que ele não falava da felicidade.

Ele falava da poesia.

Como Camões naquele famigerado soneto.

Ele não falava do amor.

E sim da poesia.

Qualquer poema se distingue do tema sobre o qual versa.

Todo poema é sobre a poesia.

Pai, posso tirar a música pra assistir?

Pode.

O som do acendedor automático do fogão entre os pingos d'água da chuva.

Gleizer me disse: hay que desfrutar.

Sem perder o sentido do vigiai, pensei com meus botões.

A água desse rio pertence a quem me desdiz com mais carinho.

João e Night Day conversaram sobre o Viva Deus e a terra vermelha.

A cartografia e a geologia são mais úteis à poesia que a história e a antropologia.

Os celulares que batem foto são o estado terminal da arte da fotografia.

É óbvio agora que o meu encantamento pelo velho feiticeiro tem muitas camadas.

Tem broa que eu comprei pra você.

Muchas gracias!

Se quiser te passo um café.

Você fez duas xícaras com tudo isso aqui de pó?

A primeira delas tem a ver com meu avô.

Com seu semblante, sua morte e a espuma que saía de sua boca quando dentro do caixão.

A segunda tem a ver com seu destino mesmo.

De caminhar sempre sozinho e permanecer fora mesmo quando inteiramente imerso.

As outras Tempo disse ainda não ser hora de saber.

Nesse mundo tem tempo pra tudo.

E sua voz soava como a voz de Milton.

As onças são as divindades que sustentam a esperança quando não há mais esperança.

Você sabe que já vai dar duas e meia né?

Sei, termino de escrever isso aqui e vou.

Namastê.


VII.


Ao que habita a estrela cravada na pedra.

Só quem não deve, não teme.

E todos devemos.

Laroyê.


nuno g.

Toróró, 04/11/22

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

milho branco, vela acesa.

Sonhei que tomava uma cerveja.

Faz anos que não tomo cerveja.

Estava suficientemente gelada, 

mas o que me agradava é que não havia homens com cabeças de formiga.

Nem mulheres com cabeças de formiga.

Havia somente um bar vazio e tranquilo.

Com as paredes antigas de bares antigos.

Silêncio, cumplicidade, calmaria.

A paz é sempre relativa.

Envelhecer exige sabedoria.

Minhas mãos saíram do magma em ebulição.

Areia nos meus olhos.

Ventos e sonhos antigos.

Uma simples cerveja gelada.

Sem nenhum olhar pousado sobre meu corpo.

Sem nada com cabeça de formiga transitando no espaço.

Isso era realmente o que mais me agradava.

Somente um antigo bar.

Vazio, tranquilo e distante.


nuno g.

Toróró, 03 de novembro de 22,