terça-feira, 18 de agosto de 2020

recife

nunca foi exatamente uma cidade

uma rocha na água, uma pedra coberta de sal

nunca foi exatamente um lugar

uma memória de uma memória apagada

algo feito do que antecede a palavra

recife,

sempre sucedida por uma vírgula

uma queda e outra queda e

tubarões lendários e interdição

recife,

só tempo sem densidade

calabouço de reticências e reticências e sal

nunca foi exatamente um carnaval

recife,

sem trocadilhos

sem marasmo

um cinema

um rio

uma farmácia

uma queda que não cessa

recife é uma fenda dentro

              uma fenda que separa o músculo do osso

a carne da alma

nunca foi exatamente um porto

nem uma estação ferroviária

recife,

marco zero de uma falta


nuno g.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O poeta e a freira

 À memória de José Alcides Pinto e Deolindo Tavares

 

O poeta sem descendentes me toca a porta.

Estou no banheiro e tenho papel higiênico às mãos.

A freira, sifilítica, pronuncia jaculatórias que, como círculos de fumaça, não se fecham.

Estou no banheiro e o poeta sem descendentes não tem tempo para esperas.

A freira, sifilítica, toca seu sexo como se nele houvesse ainda a fenda da salvação.

Deus é o abismo insondável, como esse papel sujo de fezes.

Deus é o inominável, como a freira em sua loucura erótica com navios e piratas.

O poeta me chuta a porta.

Entra na casa sem permissão.

Vasculha cada canto da jaula.

A freira, sifilítica e anoréxica, o convida à ceia.

Os dois comem pássaros vivos.

Deus, à guilhotina, como uma barata austríaca enfeitiçada.

Enquanto o rio corre para algum lugar depois do fim do mundo.

A casa, feito chamas, torna mais bela a colina.

Nos parapeitos, vestígios das cabras e dos cigarros.

A freira goza, canções de suplícios e máquinas de devorar leões.

Sua face é tão atrativa quanto as ruas.

E nada, apenas o nada, sobrevive no interior de seu hálito.

O poeta vomita as flores do seu próprio aniversário.

Entre elas as cabeças dos pássaros degolados.

Entre elas meus sonhos de depois de amanhã e de nunca mais.

Não paro de pensar em Bernardo e em sua busca da própria alma.

Ele a escondeu dos maus e agora já não a encontra.

Traz sobre nós a vantagem de saber tê-la perdido.

No inferno isso é uma sabedoria.

Os cães latem. Maria dorme.

O tempo oscila entre a angústia e a epifania.

O poeta quebra os vidros das janelas.

Retira do bolso as receitas dos psiquiatras.

A casa escurece.

A luz se refugia nos cabelos e nas unhas.

A freira, frente ao cadáver, emudece.

Só o rio é indiferente.

Só a pedra não esquece o rumo da reza.

O amargo é o único refúgio do sagrado:

por isso é tão triste o último trago de café.

 

nuno g.

Cachoeira, 12 de agosto de 2020.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

La casa, Stella Díaz Varín

Dejaban mi cabellera colgando desde el tronco de la puerta como trofeo.
Sin precedente en la historia de los indios manantiales,
y una cuenca abierta, para la mirada
de los ojos indiscretos colocada a la acera del abismo...
Y esta era mi morada.
Una víbora, encerrada en la jaula,
destinada a cualquier pájaro,
y una piedra caída temporalmente desde la cima,
una piedra nómade en busca de aventuras servía de puerta,
de mesa de comedor. ..

Qué queréis que se haga con estos materiales.
Nada. Sino escribir poesía melancólica.

Acaso, cuando la noche se despierte
debajo de los murciélagos,
no haya otra cosa sino una sensación,
y a estas vertientes
que a uno le aparecen desde el fondo de los ojos.

No haya
sino un alud de hijos de piedra,
de hijas de agua de hijos de árboles.

Entonces escribiré mi biografía
al uso de los poetas indecisos.
Miraré a través de una llama de cobalto
y distinguiré objetos olvidados;
como cuando dormía adosada a la pared
y todo parecía bello sin serlo.
Tomaré una de mis pequeñas flautas colgantes
y entonaré la canción del amor.

sábado, 8 de agosto de 2020

Luto

A Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso, Brasil), a Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos) e a Ordem de Santo Agostinho (Agostinianos) comunicam o falecimento Dom Pedro Casaldáliga Pla, CMF, Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso) e Missionário Claretiano, ocorrido neste dia 08 de agosto de 2020 às 9:40 horas (horário de Brasília), na cidade de Batatais, estado de São Paulo, Brasil.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Fragmento de "O homem da mão seca", Adélia Prado.

Séria fratura,

rigoroso  inquérito.

Fora com os narradores performáticos,

que venham os maus poetas verdadeiros,

a honesta mediocridade:

Feliz Natal para todos

E um Ano Novo de prosperidade.

E ande a carroça. Devagar mas ande.


Adélia Prado