À memória de José Alcides Pinto e Deolindo Tavares
O poeta sem descendentes me toca a porta.
Estou no banheiro e tenho papel higiênico às mãos.
A freira, sifilítica, pronuncia jaculatórias que, como
círculos de fumaça, não se fecham.
Estou no banheiro e o poeta sem descendentes não tem tempo para
esperas.
A freira, sifilítica, toca seu sexo como se nele houvesse
ainda a fenda da salvação.
Deus é o abismo insondável, como esse papel sujo de fezes.
Deus é o inominável, como a freira em sua loucura erótica
com navios e piratas.
O poeta me chuta a porta.
Entra na casa sem permissão.
Vasculha cada canto da jaula.
A freira, sifilítica e anoréxica, o convida à ceia.
Os dois comem pássaros vivos.
Deus, à guilhotina, como uma barata austríaca enfeitiçada.
Enquanto o rio corre para algum lugar depois do fim do
mundo.
A casa, feito chamas, torna mais bela a colina.
Nos parapeitos, vestígios das cabras e dos cigarros.
A freira goza, canções de suplícios e máquinas de devorar
leões.
Sua face é tão atrativa quanto as ruas.
E nada, apenas o nada, sobrevive no interior de seu hálito.
O poeta vomita as flores do seu próprio aniversário.
Entre elas as cabeças dos pássaros degolados.
Entre elas meus sonhos de depois de amanhã e de nunca mais.
Não paro de pensar em Bernardo e em sua busca da própria
alma.
Ele a escondeu dos maus e agora já não a encontra.
Traz sobre nós a vantagem de saber tê-la perdido.
No inferno isso é uma sabedoria.
Os cães latem. Maria dorme.
O tempo oscila entre a angústia e a epifania.
O poeta quebra os vidros das janelas.
Retira do bolso as receitas dos psiquiatras.
A casa escurece.
A luz se refugia nos cabelos e nas unhas.
A freira, frente ao cadáver, emudece.
Só o rio é indiferente.
Só a pedra não esquece o rumo da reza.
O amargo é o único refúgio do sagrado:
por isso é tão triste o último trago de café.
nuno g.
Cachoeira, 12 de agosto de 2020.
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