quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O poeta e a freira

 À memória de José Alcides Pinto e Deolindo Tavares

 

O poeta sem descendentes me toca a porta.

Estou no banheiro e tenho papel higiênico às mãos.

A freira, sifilítica, pronuncia jaculatórias que, como círculos de fumaça, não se fecham.

Estou no banheiro e o poeta sem descendentes não tem tempo para esperas.

A freira, sifilítica, toca seu sexo como se nele houvesse ainda a fenda da salvação.

Deus é o abismo insondável, como esse papel sujo de fezes.

Deus é o inominável, como a freira em sua loucura erótica com navios e piratas.

O poeta me chuta a porta.

Entra na casa sem permissão.

Vasculha cada canto da jaula.

A freira, sifilítica e anoréxica, o convida à ceia.

Os dois comem pássaros vivos.

Deus, à guilhotina, como uma barata austríaca enfeitiçada.

Enquanto o rio corre para algum lugar depois do fim do mundo.

A casa, feito chamas, torna mais bela a colina.

Nos parapeitos, vestígios das cabras e dos cigarros.

A freira goza, canções de suplícios e máquinas de devorar leões.

Sua face é tão atrativa quanto as ruas.

E nada, apenas o nada, sobrevive no interior de seu hálito.

O poeta vomita as flores do seu próprio aniversário.

Entre elas as cabeças dos pássaros degolados.

Entre elas meus sonhos de depois de amanhã e de nunca mais.

Não paro de pensar em Bernardo e em sua busca da própria alma.

Ele a escondeu dos maus e agora já não a encontra.

Traz sobre nós a vantagem de saber tê-la perdido.

No inferno isso é uma sabedoria.

Os cães latem. Maria dorme.

O tempo oscila entre a angústia e a epifania.

O poeta quebra os vidros das janelas.

Retira do bolso as receitas dos psiquiatras.

A casa escurece.

A luz se refugia nos cabelos e nas unhas.

A freira, frente ao cadáver, emudece.

Só o rio é indiferente.

Só a pedra não esquece o rumo da reza.

O amargo é o único refúgio do sagrado:

por isso é tão triste o último trago de café.

 

nuno g.

Cachoeira, 12 de agosto de 2020.

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