segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal, 2023.

para tio Edson, Bruno e todos os teólogos da libertação,


Os nazi-sionistas bombardeiam Belém.

O mundo celebra o nascimento do Palestino.

Aqui não faltou nada.

As crianças, os sorrisos, as comidas, o presépio e a Árvore do Mundo iluminada.

Os gatos também cearam.

Os cães também. 

Os pássaros cantaram.

Houve brinquedos, abraços, carinho e alegria.

Enquanto os nazi-sionistas bombardeavam Belém.

Enquanto os poetas de Gaza recitavam seus poemas de amor, firmeza e vida.

Enquanto os miseráveis da terra cumpriam sua condenação.

Aqui a lua quase-cheia brilhou no céu.

E nas dobras do seu brilho os gritos dos condenados da terra.

E nas dobras dos seus gritos o estrondo das bombas sobre Belém.

O Palestino segue sendo o mártir dos mártires.

Em seu sangue a promessa da redenção.

Aqui os estrondos foram os dos fogos pirotécnicos.

Em Gaza as bombas sobre hospitais, escolas, crianças e Marias.

Aqui comemos em abundância.

Sem esquecer a fome dos mutilados da Cisjordânia.

Os nazi-sionistas passarão.

A memória do Palestino não.

Os nazi-sionistas passarão.

Os poemas de Dom Pedro Casaldáliga não.

Maria Assucena sorriu, brincou e cansou.

Fez tanto xixi que uma lagoa se formou debaixo da rede.

Maria Alice sorriu, brincou e não cansou.

Trouxe tanta alegria que o rio, a Árvore e os olhos do Jaguar se encantaram.

Enquanto os nazi-sionistas seguiam bombardeando Belém.

Nunca a carne do mito foi tão presente.

O mundo-ocidente se esconde, se acovarda e silencia.

Enquanto os nazi-sionistas bombardeiam as crianças de Belém.

Sim, dezembro é o mês em que todas as feridas ardem mais.

Sim, dezembro é o mês em que a Estrela que guiou os Magos da Antiguidade volta a resplandecer.

Os nazi-sionistas passarão.

A Estrela, os Magos e a memória do Palestino não.


nuno g.

Toróró, 25 de dezembro de 2023.

domingo, 17 de dezembro de 2023

o joio e o trigo (súplica & agradecimento)

Sonhei com uma guerra infinita.

As sete espadas forjadas por um ferreiro africano.

E a voz e os dedos e o desespero implacável de meu avô.

Sonhei com a sabedoria dos bêbados e a cegueira dos assassinos.

Só em deus a luz translúcida.

Só em deus a pura escuridão amorfa e indefinida.

Aqui, tudo é rio e em todo rio a água se turva.

Se mistura a todos os líquidos e corre em direção ao mar.

A única exceção é essa cidade.

Onde o rio corre ao contrário e os sonhos nos possuem acordados.

Sonhei e entre o temor e a veneração depositei meus joelhos ao solo.

Curvei minha cabeça ante as nuvens.

E esperei o tempo da Serpente e da Árvore.

Anunciarei uma vez mais a promessa e o dilúvio.

Escrevi um palimpsesto breve.

Sobre coisas que nunca aconteceram.

Sobre livros de areia e garatujas indecifráveis.

Sonhei com uma guerra infinita.

Com o alcoolismo inevitável de verdades e espinhos.

Saltando sobre a saudade de meu avô.

Sonhei com lírios brancos acesos entre outras ervas.

E com cachoeiras anteriores a meu nascimento.

Amanhã será outra vez tempo de festa.

As sete flechas forjadas por um ferreiro africano.

Eram também os sete raios da anunciação.

Agora é tempo de descansar.

Lavar os pratos, cuidar da limpeza dos lençóis, cozinhar bem os alimentos.

Enquanto a Serpente e a Árvore vão movendo os sedimentos.

Abrindo túneis entre o Nada e o Nada.

Sob a terra, luz e escuridão se amalgamam.

E todos os rios na fervura de meu sangue.

Sonhei com os olhos em brasas do Jaguar.

Olhando a lua.

Olhando o rio.

Olhando o Trono forjado pelo ferreiro africano.

Amanhã será outra vez festa de Tempo.

Amanhecer de carnes e incensar de ossos.

O que é meu e o que é do mundo.

Unidos e separados.

Como o que é homem e o que é cavalo.

Nos centauros da Tessália.

O que é meu e o que é do mundo.

Nessa guerra sem trégua de sonhos e túmulos de azulejos azuis.

Nessa praia de gaviões onde avistei o horizonte.

Flechas, espadas e arcos coloridos.

No interior profundo da mata sombria trabalha um ferreiro africano.

E, aos seus pés, curvo minha cabeça em devoção.


nuno g.

Toróró, 17 de dezembro de 2023.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Hermenegildo.

Hermenegildo passou antes do sol nascer.

Sua silhueta a cavalo recortou a paisagem.

Me deu bom dia com voz de rio.

Hermenegildo, perfumado de alecrim e azeite.

Com seus olhos de facão e foice.

Abrindo o caminho de volta à terra arrasada.

*  *  *

Hermenegildo passou e o sol nasceu.

Sua voz de rio estancou ante meu amanhecer.

E com as ferramentas suas fui abrindo o caminho.

Hermenegildo me soprou um silêncio frio.

E me apontou com o olhar as três Marias ainda no céu.

Outra vez a hora de inventar um dialeto para bendizer.

*  *  *

Reza em mim que eu te perco da salvação.

Judite e Adélia cruzaram o caminho.

Alguém serviu um prato de comida aos deuses e outro aos cães.

A lua, minguante e terna, desapareceu atrás da serra.

Reza em mim que eu te salvo da perdição.

Sonhei com o sal, o mar, a sede e o corpo de Larissa.

Ela estava mais velha e eu ainda era um menino.

Nossas Marias haviam seguido viagem.

E nossos corpos celebravam todas as passagens.

*  *  *

Reza em mim e chove que essa seca já muito tarda.

Hermenegildo pronunciou o nome de Miguel sobre os maturis.

O rio está bonito hoje - na voz noturna de Larissa o tempo girou ao contrário.

Amanhã nossas Marias estarão juntas novamente.

Nas matas sombrias e no esverdeado coração das águas.

*  *  *

Suportar a dor extenuante.

Abraçar as brasas que não se extinguem.

Reza em mim e o sol se fará dicionário para a cura e para a morte.

*  *  *

Reza em mim e me rega com fogo.

Todas as estrelas no olhar de Hermenegildo.

Sonhei com Larissa coberta de sal e vestida de azul na praia do Montecristo.

Envelheci tanto que me tornei mais jovem do que o dia em que nasci.

O tempo se enrodilhou nos seus cabelos encaracolados.

Semeou serpentes e arco-íris entre eles.

E um vento de quarta-feira nos recordou nossas Marias.

*  *  *

Sentamos numa pedra.

Avistamos o Gavião.

Reza em mim e será como se me rezares eternamente.


nuno g.

Toróró, 13/12/2023.

domingo, 10 de dezembro de 2023

a dor que habito - canção de fim de ano.

Haverá um tempo em que tudo será diferente.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

Não haverá mais luto no coração da pedra.

E as nuvens poderão descarregar os sonhos que guardam.

Haverá um tempo em que todos os temores serão imaginários.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

E nós que aqui estamos não mais aqui estaremos.

Mas nossas sombras e nossas sedes e nossas fomes seguirão presentes.

Haverá um tempo em que tudo será distinto.

E a palavra encontrará seu próprio eco.

Assim como hoje o escuro encontra o escuro.

Haverá um tempo em que luz será uma metáfora gasta.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

Os raios abençoarão a terra.

Destruirão os castelos.

E as crianças se banharão nos rios outra vez.

Haverá um tempo em que os periódicos serão substituídos por poemas.

E que traduzir lágrimas será considerado algo honrado e honesto.

A justiça deixará de ser o que é agora.

E o conhecimento dará passagem à Sabedoria.

Velha senhora, amiga-irmã da morte.

E, de mãos dadas, as duas caminharão pela cidade vazia, esgotada.

Dezembro, às vezes, é o primeiro mês do ano.

Mas também é o tempo em que ardem com mais intensidade as feridas.

Haverá um tempo em que olhar para trás será mais que um mero exercício aeróbico.

E que o horizonte estará mais próximo do alcance de nossas línguas.

Haverá um tempo em que os sonhos nos guiarão pelo mundo.

Que o vento da tempestade varrerá com força nossa cegueira.

Nos sentaremos à mesa e comeremos o que nossas próprias mãos prepararam.

Haverá um tempo em que árvores e presépios tornarão a ter sentido.

E a Sabedoria, velha senhora, amiga-irmã da morte.

Vestida de roxo e de realidade.

Nos abraçará como se a dor nunca tivesse sido nossa primeira e única habitação.


nuno g.

Toróró, 10 de dezembro de 2023.