quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Iluminura II

As juremas floresceram.

Cintilante invadiu a roça dos sonhos para comer os pés de macaxeira.

Os cães latiram e despertaram Moura.

Tia Norma, perdida no poço das onças, me pedia para lhe guiar pelo Caminho Amarelo de Ernesto.

Ignez chegou, Maria partiu: foram para a escola outra vez.

Botei água pro café, tomei um rapé, acendi um cigarro.

E sorri pensando que todos os sonhos que não consigo lembrar estão reunidos em algum lugar.


nuno g.

Toróró, 29/09/22. 

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

iluminura

Tia Neuza fez aniversário:

noventa  e uma primaveras.

Pina pariu:

três lindos gatos alvinegros.

O fascismo seguiu mordendo nossos calcanhares:

a razão burocrática também.

Choveu.

Maria fez prova de geografia.

Comemos feijão com pirão.

A lua, amarela, se pôs pontualmente às oito horas na serra de Muritiba.

Maria comeu macarrão.

Com tomates, pimentão, ervilhas e champignons em conserva.

O vento Aracati veio até aqui.

De jangada até o Montecristo.

Guiado pela alma do Jacaré, o pescador.

Depois de saveiro, pelo Paraguassú.

Acariciou a Pedra da Baleia.

E se foi, cantando:

como costumam cantar os ventos que atravessam as peles de Tempo.


nuno g.

Toróró, 28 de setembro de 2022.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

A morte e a morte de Tempestade

Tempestade morreu: regressou às terras de seu dono.

De onde nunca desejou ter saído.

A cadelinha de Ignez também morreu.

Antes de morrer saiu fogo de seus olhos.

Uma flor em chamas.

Também o cavalo do caçador se foi.

Três mortes antes do amanhecer.

Na floresta dos sonhos uma grande festa.

Aqui na terra o pesadelo fascista.

Tempestade sabia muitas coisas.

Entre elas o caminho dos currais velhos de cor.

O cavalo do caçador seguiu a flecha do Velho.

Ontem me narraram três sonhos.

Hoje me narraram três mortes.

A fogueira segue acesa na encruzilhada.

Dos três nomes que possuíram o corpo de Tempestade.

Foi este último que o acompanhou à partida.

O fascismo não nos fará esquecermos o que não somos.

Nem será capaz de deter nosso caminho em direção ao que podemos ser.

Tempestade sabia muitas coisas.

Na lua cavalga Hermenegildo.

Cleonice traz entre os dedos uma esperança verde.

Em meio a neblina, Tempo sorri.

E o cortejo de encantados segue entoando seus cânticos febris.


nuno g.

Toróró, 27/09/22

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

sonhos.

banhos, serpentes, eguns.

ruas estreitas e muitas águas.

os fascistas voltaram ao poder na Itália.

a fogueira segue acesa na encruzilhada.


nuno g.

Toróró, 26/09/22.


domingo, 25 de setembro de 2022

cemitério indígena.

era uma vez.

ossos & penas debulhados.

entre grãos de nada.

e camadas e camadas de esquecimento.

era uma vez.

um chão onde antes dançavam os tapuias.

onde antes se fartavam de alegria corpos e corações.

era uma vez uma menina.

com um matulão de sonhos.

e um candeeiro de larva vulcânica.

era uma vez a morte.

e a chegada dos nossos.

com suas armas e sua ignorância.

e seu deus esfomeado de ouro e prata.

era uma vez um futuro.

ossos & penas debulhados.

entre grãos de nada e eternidade.

entre chispas de fogo fátuo e desmemoria.

onde não dançavam corpos tristes e corações vazios.

era uma vez um recém-renascido.

andando entre arranha-céus e um deslumbrante céu sem nuvens.

banhando-se num rio de águas antigas.

ouvindo onças imortais.

embalando-se nas redes de Tempo.

entre-nuvens. entre-árvores. entre forasteiros-familiares.

era uma vez um sonho.

entre pontes e fragrâncias.

com uma saudade do mar: verde e absoluto.

era uma vez cães que latiam e latiam sem parar.

ossos & penas debulhados num chão indígena.

e uma leve esperança nas mãos que guiam a passagem.

era uma vez um guerreiro que guerreava com delicadeza e suavidade.

era uma vez um fogo inextinguível.

era uma vez

era uma vez

era uma vez...


nuno g.

Toróró, 25/09/22.

sábado, 24 de setembro de 2022

chuva.

Hermenegildo cruzou meu sonho a trote.
Tempestade cintilava.
Pina pariu.
Tiros em Divinópolis: onde antes só a poesia primorosa de Adélia.

*  *  *

O corpo-água e a história do menino afogado.
O corpo-fogo e a história das chamas e labaredas.
A pedra, o sorriso e a névoa.
Nossos corpos em pedaços ou a história como mapa.
Artefato caseiro que explode a procissão dos dias.

*  *  *

Não esqueço e sigo.
No rumo do horizonte.
Estrada que trilhou Cleonice.
Antes de receber a estrela e a farda.

*  *  *

Esmeralda veio na linha do mar.
Aos pés do ferreiro da mata assentou seu ponto e se firmou.
Arco-íris no céu, serpente na terra.
Celebrar os mortos é apascentar o que nos ameaça.
Entre o Nada e o Nada muitas coisas se movem.
As pétalas das aves de arribaçãs são promessas de mais-vida.

*  *  *

Um vaso de violetas roxas aos pés do pescador.
Coroa-de-frade no ori da casa.
Hermenegildo, Cleonice, Tempestade.
Esmeralda é sereia da linha do mar.
Esmeralda é devoção, alfazema e passagem.

Tudo passa.
O raio fulminante do jaguar nos atravessa.
Entre as águas e o fogo, areia.
Machado à beira-mar.

nuno g.
Toróró, 24/09/22.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

viernes entre nuvens.

As oiticicas não pegaram.

*  *  *

A carne também se amacia.

Igualmente ao espírito.

*  *  *

O futuro está atrás.

O passado à frente.

As batatas-doces sim vingaram.

E o candeeiro seguiu cumprindo seu intuito.

Nos lembrando que à nossa volta faz escuro.

Recordando que cura e perdão não são estações, são caminhos.

Ainda quando isso queira dizer acender feridas necessárias.

Ou mesmo que a nossa limitada percepção não nos permita mais escrever com nuvens.


nuno g.

toróró, 23/09/22.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

miércoles de sol.

para Sergio Mondragón,

Maria Luísa sonhou com um palácio.
Cheio de flores.
Verdes, azuis e rosas.

*  *  *

Bernardo - gritaram Inês, Maria e Santiago.
No exato instante em que o sol nascia.

*  *  *

Enquanto buscávamos a forma animal de nossa alma.
Tempo brincava de esconder-revelar e semear.

*  *  *

A saia branca girou no terreiro.
Não era sonho - era futuro que já ocorreu.

*  *  *

Muita névoa.
Óleo vazando da caixa de marcha.
João perseguindo a própria liberdade.

*  *  *

Na floresta você é o jaguar.
E as onças criaram asas e seguiram seu voo. 

*  *  *

Um Vento chamado Aracati percorreu nossas entranhas mais uma vez.
Sob o Machado, a luz áspera e o corpo sem corpo da salamandra do fogo.

*  *  *

Enquanto Tempo, em forma de Sussuarana, brincava.
Esconder-revelar, o palácio da Rainha da Floresta.
Suas flores semeadas e suas fogueiras sempre acesas.

*  *  *

No céu azul da floresta, o Gavião. 
E no chão, a Serpente.
Com suas plumas de mil cores.
Entrançada à saia branca.

*  *  *

Aracati, o Vento - arrastou ao sal o que já não servia mais.

nuno g.
Toróró, 21, setembro, 22.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

o sonho do cego do Caquende

até os cegos te contam os sonhos?

*  *  *

Formou-se e se viu obrigada, por falta de trabalho, à mudar para Minas.

Chorava. Chorava. Chorava.

Morava no Guarany - que todos, nessa cidade, sabem onde é.

Que todos sabem a Quem pertence.

*  *  *

O excesso de umidade apodreceu as raízes do Baobá.

Ou talvez tenha sido mesmo a ausência de uma serpente enrodilhada em veneração.

*  *  *

Claudio nos lembrou do aniversário do mateus Cachoeira.

Foi Tempo quem me mandou substituir diário por dicionário.

Saber menos. Confiar mais. Seguir.


nuno g.

Toróró, 16/09/22.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

meu avô.

gosto de olhar as árvores crescerem.
em silêncio.
gosto de ouvir as árvores crescerem.
deitado à rede.
vez ou outra um passarinho rompe o silêncio.
é como se meu avô me visitasse.
nessas horas meu pensamento se desgarra da distração onde vive.
e quase toca algo de matéria.
passarinho avoa, meu avô se vai.
e meu pensamento volta à distração onde vive.
gosto do nada e de todas as coisas que vivem dentro do nada.
tenho horror à palavra que só existe em representação.
tenho horror à palavra que é seta apontando pra fora.
por isso uma das minhas palavras favoritas é víscera.
também gosto de amarelo que quando se junta com caminho sempre me lembra Ernesto.
e todas as lonjuras onde nossos passos teriam tocado se ele não partisse tão antes.
gosto de pensar que um dia tudo isso passa.
essas árvores vão ter virado floresta.
e meu corpo vai estar sob esta terra.

*  *  *

gosto de pensar que já vivi aqui outras vezes.
e que algum dia renascerei entre essas pedras que amo.
e esse rio será águas límpidas.
serei aquele pássaro e o homem deitado na rede será meu avô.
ele me ouvirá cantar e o meu canto o salvará mais uma vez.

nuno g.
toróró, 14 de setembro de 22.

domingo, 11 de setembro de 2022

as três estrelas.

para Larissa Gonçalves, Bruno Gonçalves e Maria Alice Gonçalves 


Foi uma cigana que me disse:

meu filho vai enfrentar demanda difícil,

mas vai vencer.

Três anos depois a mesma cigana.

Batendo fotos no estacionamento de um centro comercial.

Nos guardamos na casa de uma filha das águas doces.

E vimos a lua de prata e fino entendimento.

Os aviões fazendo a volta antes de zarpar ao sul.

E o som do mar ecoando no espelho de Tempo.

A voz de Milton ainda no corpo.

A voz de Deus.

A voz de Miguel, o Archanjo.

A voz de Yauaretê. 

A voz de Iararana. 

A voz da Sussuarana.

A voz do jaguar encantado.

A voz dos sonhos e da infância.

A voz das onças e de Aracati.

Dormimos num motel.

Mas não fizemos nada do que se espera daqueles que dormem em motéis.

Dormimos apenas.

E eu não pude recordar dos sonhos que tive aquela noite.

Menos ainda esquecer quão importante eles eram.

Escutei os sonhos dela.

Sobre carros, avós e confirmação.

Obrigado Milton.

Obrigado Cigana.

Obrigado povo das águas.

Em tempos de dependência e morte.

Só sobreviverá o que for amor.

O resto será já cinzas e esquecimento.

Quando as três estrelas iluminarem outra vez a escama da praia.

O resto será já passagem feita.

Ex-voto. Ex-corpo. Ex-memória-da-escuridão.

A voz de Milton. O trem de ferro.

As palavras rearranjadas de forma a expressar uma imensurável amplidão.

Obrigado Milton.

Eles todos passarão.

Você não. Você nunca.

A voz de Dom Pedro Casaldáliga.

No quilombo. Na aldeia. No terreiro.

Nas três estrelas que iluminam as ruínas dessa nação.

A voz do Jequitinhonha.

A voz do Araguaia.

A voz do Jaguaribe.

Eles todos passarão.

Sua voz não.


nuno g.

Toróró, 11/09/22

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

cambono II

na curva da  estrada, à noite, o cavalo de Hermenegildo cintila.

*  *  *

as promessas do sol ressuscitam à voz do Deus da Guerra.

*  *  *

samsara não é uma palavra, é uma dança que nos ensina.

*  *  *

rios e serpentes, montanhas e corpos esquartejados.

*  *  *

longe daqui uma aranha tece o Destino.

estamos sempre em outro lugar e o que somos será sempre impronunciável.


nuno g.

toróró, 09/09/22.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

cambono.

Sonhei com Dick, o cão.

Ele estava desplumado e triste.

Como um rio ante as represas que o impedem de chegar ao mar.

*  *  *

No sonho também havia outras coisas que não consigo lembrar.

As coisas que realmente interessam estão sempre em outro lugar.

Como as lágrimas que só afloram quando a distração nos leva a sentir o esquecido.

*  *  *

Em outro sonho eu cavava uma cova.

E quanto mais eu cavava menos espaço vazio havia.

Meu corpo superava em matéria o vácuo que minhas mãos lhe destinavam.

*  *  *

Cleonice foi coroada Senhora e Madrinha.

Por um instante senti que poderia alcançar alguma compreensão.


nuno g.

Toróró, 08/setembro/22.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

a báscula do julgamento III

Garfield se entrelaça às nossas pernas como um cipó na árvore de Tempo.
Hermenegildo segue passando todas as tardes montado em seu cavalo.
Tempestade pasta e nos guarda do abismo.

*  *  *

Perdão e cura não são estações, são caminhos.

*  *  *

Lírios brancos em sonhos cheios de urgências.

*  *  *

Onde mais andaria o Cristo senão entre os famélicos?
Qual força seria suficiente para impedir o rio de chegar ao mar?
Dino caça. Pina dorme. Dick passeia.

*  *  *

As flores roxas de São Miguel semeiam o horizonte.

nuno g.
Toróró, setembro de 2022.

domingo, 4 de setembro de 2022

a báscula do julgamento II

A procissão marchava dividida em duas fileiras.

Eles haviam desaprendido a língua portuguesa.

Caminhavam em silêncio.

Apenas o som dos passos sobre os irregulares paralelepípedos.

*  *  *

Maria me abraçou à sombra do pé de cacau.

*  *  *

Os maracás tocaram com força e intensidade.

As chamadas foram entoadas com firmeza.

Cleonice se ergueu e cruzou o Azul e o Branco até a mesa do centro.

*  *  *

Recebeu a graça do Tucum e a benção da Rainha.

O sol, a lua e as estrelas brilharam.

As varas do caule de milefólio foram consultadas.

*  *  *

Maria me abraçou.

A luz invadiu o quarto.

Enquanto os encantados dançavam ao redor das brasas que resistiram à madrugada.


nuno g.

toróró, domingo de 2022.


sábado, 3 de setembro de 2022

a báscula do julgamento.

Judite desapareceu.

Stella se matou.

Hermenegildo segue passando todas as tardes em seu cavalo.

*  *  *

papai, cadê as três estrelas que a lari me deu?

E os seus lábios se moveram pronunciando sílaba-a-sílaba o conto uruguayo.

*  *  *

Nunca encontramos o corpo.

Nem os filhotes.

Os jerimuns brotaram.

Entre as juremas e o mar.

*  *  *

Alguma tosse povoando o inverno de setembro.

A cidade girando sobre si mesma como um pião.

*  *  *

Cuscuz com ovos e um sonho qualquer.

Na desimportância de uma distração a manhã se consumindo.

E os tomates avermelhando a horta.


nuno g.

Toróró, sábado de 2022.