terça-feira, 28 de novembro de 2023

Agô!

para Lari,


O sangue dessa cidade sabe a dendê.

E sua cor é a da dor.

Aqui, muito se medita quando se sonha com machado ou fogo.

Eguns, ladeiras, ebós, encruzilhadas.

Aqui muito dói toda memória.

O sangue dessa cidade sabe à dor.

E sua cor é a do azeite.

Aqui, muito se medita quando se sonha com palha ou água.

O cheiro dessa cidade arde.

Orixás, Inquices, Voduns e Caboclos.

Aqui, muito se medita quando se sonha com serpente ou arco-íris.

Aqui muito se medita antes de esquecer.


nuno g.

descendo a Serra de Muritiba, 27 de novembro de 2023.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O sonho de Hermenegildo

Hermenegildo sonhou que era pássaro.

E, como todo pássaro, aprendeu o medo de quebrar a asa.


Quando o sol se põe Maria entristece, encabula.

Não pela noite que é, desde sempre, sua melhor amiga.

Mas pelo banho que se avizinha.

Ainda com os aromas dos chás, Maria não.

Hermenegildo sonhou que era beija-flor.

Botou o barco nas águas.

E voou.


nuno g.

Toróró, 27 de novembro de 2023.

sábado, 25 de novembro de 2023

Lonjuras.

Caminhamos até o Rio do Corte.

Nome bonito para dizer o lugar onde águas e navalhas se confundem.

Os tambores de São Luís e os atabaques da Rua da Feira no mesmo vento.

E o coração tão distante quanto disparado como uma segunda pele.

A luz à carne sonâmbula despertando.

Hermenegildo cruzando a montanha em chamas.

E os lábios pronunciando uma nova palavra.

Nome bonito para dizer o lugar onde morte e cura se confundem.

Adélia com seu vestido de missa e sábado.

E os dois cães rezando a Tempo e passagem.

Janeiro já chega com seu vento e seu rio.

E as onças dos sonhos sabendo à mais-realidade.

Árvores me começam.

Árvores me semeiam.

Árvores me devoram.

E vão me desensinando a ser humano.

A se libertar das folhas, das penas e dos primeiros grãos.

Judite cruzando a montanha em chamas.

Tempos de três sóis para cada ser.

Horizonte estreito, fenda na foz onde nasce a larva.

O som do choro de Maria antes de nascer.

A relva onde caminhará entre fogos e águas.

Serpente que é - à frente outra Maria.

Depois do fim do mundo ainda a incerteza sobre o que é o antes da lâmina ser rio ou navalha.

Os indíos todos aqui.

Dançando. Dançando. Dançando.

Como se as nuvens fossem uma bebida ofertada pelas divindades.

Hermenegildo, sempre ele, mergulhou nas águas (ou seria sangue?) do Rio do Corte.

E o sol nasceu por detrás do pasto da Maria Preta.


nuno g.

Toróró, 25 de novembro de 2023.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Atabaques.

Tardei, mas.

Me vieram as forças e a permissão de roçar as asas daquela noite.

A mulher ao meu lado razão e leite e perfume de.

Paisagem da janela na voz do Caçador de Si.

Todos os fogos explodindo à beira do rio que é todos os rios.

23 de novembro - nunca mais um dia qualquer.

Azia. Serenidade. Clamor de chuva.

Adélia, Hermenegildo e o inventário das coisas que sabem a pássaros.

Sobre sementes e árvores e baús onde se guardam artefatos explosivos.

Tardei, mas.

Eles eram muito mais antigos do que tudo o que até então chamei de antigo.

Eram arcaicos e enigmáticos.

Tremiam. Abraçavam com muita força. E nos fizeram leves.

Nos ensinaram o necessário.

Se desfazer das folhas, se desfazer das penas, se desfazer das máculas.

Tardei, mas.

Voltei a sentir o fio de prata me atar à terra.

De tão terra que eram soavam como nuvens.

Traziam a morte e a vida dentro. Traziam o Silêncio.

O Impronunciável.

Corpos-montanhas.

Já faz tempo, mas não esqueço.

Estão nessa razão e nesse leite da mulher que ao sofá amamenta agora.

Estão nessas árvores que crescem.

Estão em tudo que recorda esse 23 de novembro.

E dessa paisagem da janela aberta pela voz da onça verdadeira os vejo.

Os sinto. Os reverencio.

E a Eles rogo: razão, leite e afeto sem máculas.

Tardei, mas.

Voltei a sentir o fio de prata que me ata à terra.

E agora posso roçar de leve o que ocorreu naquela noite.

E, finalmente, ouvir a voz poderosa e sedutora da morte.


nuno g.

Toróró, 23 de novembro de 2023.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Anaeróbicos.

para Larissa & Gabriela,


Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Os povos que vivem na ausência de ar.

Que se reproduzem na ausência de ar.

Que se realizam na plena ausência de ar.

Difícilmente se revelam aos olhos dos povos de Ar.

Quase nunca se deixam ver pelos olhos dos povos de Fogo.

E nunca se permitem ser tocados pelos povos de Água.

Os anaeróbicos existem.

Como os arco-íris ou as plantas carnívoras.

E embora pareçam absurdos nada neles difere de tudo que existe.

Trazem a marca de estar aqui como todos.

Os afetos maculados.

A sombra do Karma.

A suspeita sobre o destino.

E a anomalia da memória que recorda coisas não-vividas.

Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Rio que corre em busca de um nome.

Vento que sopra em direção à sua própria origem.

Onça que quando canta redesenha todo o cosmos.

Os povos da Terra são os únicos com quem os anaeróbicos conversam.

E o conteúdo dessas conversas é de um sigilo vulcânico.

Usam palavras de larva em seus diálogos.

E quando se movem o fazem como se fossem placas tectônicas.

Dos nossos medos conservemos apenas os imaginários.

Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Sonhar com onças é sempre bom presságio.

Seja qual for a cor em que elas se apresentem.


nuno g.

Toróró, 22 de novembro de 2023.

sábado, 18 de novembro de 2023

Oráculo da Onça Parda

à posta do sol

em torno às brasas

palavras girando

kaftas de Beirute

um galho quebrado

renascendo ao sabor das águas

bistecas de porco e linguiça apimentada

palavras girando

Maria Flor à casa da árvore

um galho quebrado

renascendo sob a férrea vontade do fogo

severo chão

e + kaftas de Beirute

palavras girando

vento trazendo histórias de lonjuras

Moçambique, Cisjordânia, Uruguay

à posta do sol

Maria Assucena ao colo da lua

olhando a lua no céu

em torno às brasas

palavras girando

Maria, Maria, Marias...


nuno g.

Toróró, 18 de novembro do ano de 2023 da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, Além.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Efêmeros em palavras efêmeras, por Mahmoud Darwish

1.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

levem seus nomes e vão embora

tirem suas horas do nosso tempo e vão embora

roubem à vontade do azul do mar e das areias da lembrança

tirem fotos à vontade, e assim vão saber

que não hão de saber

como uma pedra da nossa terra constrói o teto do céu.


2.

Vocês que passam com palavras efêmeras

de vocês vem espada, de nós vem nosso sangue

de vocês vêm fogo e aço, de nós vem nossa carne

de vocês vem outro tanque, de nós vem pedra

de vocês vem a bomba de gás, de nós vem chuva.

Um mesmo céu e um mesmo ar nos cobre

peguem seu quinhão do nosso sangue, mas vão embora

entrem no jantar dançante, mas vão embora

temos que zelar pela rosa dos mártires

temos que viver como a gente quer!


3.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

como a poeira amarga, passem onde quiserem, mas

não passem entre nós como insetos com asas

temos o que fazer na nossa terra

temos trigo a criar e regar com o orvalho do nosso corpo

temos o que a vocês aqui não agrada:

temos pedra... e perdiz!

Levem o passado, se quiserem, ao mercado das quinquilharias

devolvam, se quiserem, o esqueleto do passarinho ao prato de porcelana.

Temos o que não lhes agrada: temos o futuro

temos o que fazer na nossa terra.


4.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

soquem seus dramas num buraco abandonado e vão embora

voltem atrás o ponteiro do tempo até o bezerro sagrado

ou até o disparo ritmado do revólver!

Temos o que a vocês aqui não agrada, então vão embora

temos o que por dentro vocês não têm:

uma pátria que jorra um povo que jorra uma pátria

que combina com esquecer e lembrar.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

é hora de irem embora

de morarem onde quiserem, mas não entre nós

é hora de irem embora

de morrerem onde quiserem, mas não entre nós

temos o que fazer na nossa terra

aqui temos o passado

temos a primeira voz de vida

temos o presente, o presente e o que está por vir

temos o mundo aqui e temos a outra vida

saiam da nossa terra, do nosso deserto, do nosso mar

saiam do nosso trigo, do nosso sal, da nossa ferida

de tudo

saiam das lembranças da nossa memória,

vocês que passam com palavras efêmeras.


Mahmoud Darwish.

tradução: Alexandre Facuri Chareti, Beatriz Negreiros Gemignani, Camila Alcântara, Renata Parpolov Costa, William Diego Montecinos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ode à Cachoeira

Existem cidades que são somente cidades

Lugares onde as pessoas vivem

Outras cidades são prólogos, prefácios, pequenos pressentimentos

Existem cidades que são somente lugares

Onde as pessoas vêm e vão

Como as algas marinhas

Ao sabor das marés

Outras são como oráculos encravados à flor da terra

Nos recordando quem somos, de onde viemos e para onde vamos

Existem cidades que são feitas de fogo e água

Nelas não habita o acaso

As esquinas gritam e sussurram a depender de coisas que nos escapam

Existem cidades que são somente cidades

Onde os sonâmbulos caminham

Outras acendem escuros e abrem túneis debaixo da crosta do corpo

Existem cidades que são só passagem

Outras são ancoradouro de rios e galáxias

Existem cidades onde tudo é espera

Lugares onde tudo que acontece recorda a presença do Nada

Outras são todas elas presságio

Reminiscências do mistério que nos acompanha desde o berço

E memória profunda da morte que nos aguarda.


nuno g.

Toróró, 12 de novembro de 2023.

sábado, 11 de novembro de 2023

O monstro Zack. (série poemas para crianças - 02)

Era uma vez um monstro chamado Zack

Ele era roxo, todinho roxo

E as crianças o chamavam de monstro porque ele devorava todos os bichinhos

Ele comeu os bichinhos da floresta

Ele comeu os bichinhos do deserto

Ele comeu os bichinhos do mangue, dos rios, dos mares

O monstro Zack veio do reino do Nada

E antes do arco-íris desaparecer ele atravessou o portal

E assim chegou no reino da Magia

As crianças do reino da Magia ficaram muito tristes

Pois não havia mais bichinhos pra elas brincarem

Então elas se reuniram e decidiram salvar os bichinhos

Agarraram uma lança com a ponta muito afiada

E furaram o bucho do monstro Zack

Saiu bichinho pulando pra tudo que é lado

E as crianças voltaram a brincar e a sorrir

Entre os bichinhos havia um verdinho verdinho como as algas de açude

O nome dele era Saudade

E desde aquele dia ele anda aprontando traquinações no reino da Magia


nuno g.

Toróró, 11/11/23.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O navio. (série poemas para crianças - 01)

Havia um navio encalhado no mar
Do aterro da praia se via o navio
Ancorado em seu próprio peso
Havia uma aranha que andava sobre as águas do mar
A aranha ia e vinha
               vinha e ia
Da praia ao barco
Do barco à praia
E trazia as pontas das patas branquinhas
Da cor do sal da espuma do mar
No barco havia uma girafa de asas alaranjadas
E uma zebra com uma língua de fogo
Ou talvez fosse o contrário
Uma girafa com língua de fogo
E uma zebra com asas alaranjadas
Haviam outros animais que não recordo
E outras cores além do verde do mar
Atrás da praia uma coluna de prédios
Árvores de concreto feias e autoritárias
Insistindo em tentar apagar as histórias mágicas do mar
Era uma vez um navio com animais africanos
Encalhados no mar de Iracema
E um índio sentado na praia sonhando
No sonho do indío uma aranha com as pontas das patas branquinhas
Andava sobre as águas do mar
Ia e vinha
Vinha e ia
Do barco à praia
Da praia ao barco
Escrevendo histórias mágicas do mar
Sobre navios, animais, cores, espumas, asas
E outras palavras da bonita língua do mar

nuno g.
Toróró, 08/11/23

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A chuva. (série poemas para crianças - 00)


Nasceu uma chuva dentro de mim

Uma chuva sobre uma ilha

E dentro da chuva nasceu uma borboleta

Uma borboleta nadando num lago bravo

Em meio a um vale algo mágico

E nas pupilas da borboleta nasceu uma flor

E na cavidade da flor nasceu uma luminosa ilha

Uma ilha onde choviam chás de ervas

Alfazema, camomila, arruda, alecrim

Benjoim e outras ervas que nasceram entre os raios

Da chuva que chovia na ilha

Nasceu uma chuva dentro de mim

Um jaguar correndo no meio da chuva

Um jaguar cruzando um largo rio

Um jaguar proseando com borboletas e flores

Nasceu um jaguar dentro de mim

E nas pupilas do jaguar duas luas

Uma cheia, outra nova

E dentro dessas luas se ouviam canções de ninar

Tão perfumadas quanto a alfazema

A camomila, a arruda, o alecrim


A flor pousou na asa da borboleta

Kakituramba choveu chá de benjoim

E novas águas nasceram dentro de mim


nuno g.

Toróró, 07/11/23