segunda-feira, 18 de novembro de 2019

terno da alvorada


Os anos em Cachoeira sempre terminam antes, ainda é novembro quando a cidade se fantasia e dança pelas ruas ao som da charanga se despedindo de tudo o que já é passado. A oração em frente à Minerva, o sino da capela, a saudação à Nossa Senhora do Rosário, o feijão na faceira, a subida da ladeira do Monte, a descida do Curiaxito, o arrastão da rua da feira, a visão do alto do Rosarinho, as águas do rio Pitanga e o despacho final na praça Dr. Milton assentam sob o solo desta cidade prateada os fundamentos do novo ano que se inicia. Assim tem sido desde ao menos cem anos – assim foi hoje. O sol é escaldante e a alegria redesenha as faces que amanhã tornarão a assumir suas feições cotidianas quando os mandús regressarem à terra dos mortos e as cabeçorras aos porões desses casarões em ruínas. Em Cachoeira os reis magos não se atrasam e entre os presentes que trazem se encontram as armas que necessitaremos amanhã. Entre o largo do Caquende e a imponência majestosa do convento do Carmo a Senhora de Vermelho vai rodando e distribuindo seus raios entre os fiéis, empoleirados nas escadarias e janelas muitos são os que olham o cortejo de Tempo. Aqui, em Cachoeira, a chegança dos reis magos coincide com o aniversário de Maria e quando isso ocorre sempre já nos encontramos um passo à frente na linha tênue que organiza o transcorrer dos dias. Na rua do Brega pisamos em mel e escutamos os ecos das conversações que vão passando à história e no jardim grande deixamos escapar nossas orações de agradecimento por termos sobrevivido até aqui. Ogum se delicia no bar América: os dias de trégua são a única primavera que conhecem os filhos do deus da guerra. As crianças correm, se pintam, chutam as latas de cervejas abandonadas no trajeto e assopram os cabelos desalinhados da deusa de seios enormes. Cachoeira – a maior das menores cidades do mundo – sofre de antecipação e enterra na véspera o ano que agoniza. A charanga embala os sonhos, as angústias, os desejos e as desilusões dos que a acompanham. A charanga marca o ritmo dos que dançam violentamente banhando com seu suor os paralelepípedos. As famílias se reúnem, os amigos se abraçam, os amantes se entreolham e o domingo goteja numa clepsidra de vidro. Em Cachoeira o ano sempre termina num domingo e a primeira segunda-feira que floresce é sempre um dia fora do tempo. Na terça, a charanga voltará às ruas para o terno da saudade – e se alguém tem ainda alguma lágrima para derramar poderá fazer nesse derradeiro instantâneo da festa. Depois tudo voltará a ser como antes. Quem brigou no embalo terá que esperar até novembro para revidar – e como sabem esperar os fiéis cachoeiranos. Os fogos são muitos e é o estampido deles que adormece a tarântula do paraguassú até que na terça-feira – no terno da saudade – a charanga venha tocar às margens do velho e silencioso rio lhe recordando que já é hora de começar a tecer todas as coisas que devem existir. É uma honra que se paga com uma caixa de cerveja a visita da charanga à casa de alguém – é uma dívida que se adquire a dádiva de vir de tão longe celebrar assim as passagens que tem que ser feitas. Assim foi hoje – assim será sempre. Os mais sensíveis podem ser irreversivelmente afetados pelo ritmo da charanga – até os mais insensíveis são afetados pelo despertar da tarântula. O comércio reabre. Os da universidade se afastam. O mercado ressuscita. O rio se cala. A ressaca da cidade, despida de suas fantasias prateadas, vai se esvaindo. As famílias regressam às suas intimidades e recatos. As crianças voltam às escolas. Os instrumentos da charanga descansam na Lira Siciliana e na Minerva. Deixamos de esperar pois já aprendemos que volverá. Quem vomitou fogo carregará olhos acesos por todo o ano. Quem viu as cinzas de que são feitas as carnes será noite por todo o ano. Quem derramou sangue nos paralelepípedos conhecerá a beleza das cicatrizes. Quem não suportou a inclemência do sol será engolido pelo demônio do esquecimento. Aqui, o ano acabou antes, como sempre. Ainda é novembro e já estamos em 2020. Um velho e bom amigo me escreve: o inferno não prospera onde há esperança – eu lhe respondo: a desgraça não vinga onde toca a charanga. A pulsação do que nos move para além dos precipícios que nos foram destinados é um prodígio. Que Nossa Senhora d’Ajuda conceda luz a quem é da luz e escuro a quem é do escuro & que a memória dos mandús conserve eternamente amolado o fio mineral de nossos corações. Amém.

nuno g.
Cachoeira, 17 de novembro de 2019.