Os anos em Cachoeira sempre
terminam antes, ainda é novembro quando a cidade se fantasia e dança pelas ruas
ao som da charanga se despedindo de tudo o que já é passado. A oração em frente
à Minerva, o sino da capela, a saudação à Nossa Senhora do Rosário, o feijão na
faceira, a subida da ladeira do Monte, a descida do Curiaxito, o arrastão da
rua da feira, a visão do alto do Rosarinho, as águas do rio Pitanga e o
despacho final na praça Dr. Milton assentam sob o solo desta cidade prateada os
fundamentos do novo ano que se inicia. Assim tem sido desde ao menos cem anos –
assim foi hoje. O sol é escaldante e a alegria redesenha as faces que amanhã
tornarão a assumir suas feições cotidianas quando os mandús regressarem à terra
dos mortos e as cabeçorras aos porões desses casarões em ruínas. Em Cachoeira
os reis magos não se atrasam e entre os presentes que trazem se encontram as
armas que necessitaremos amanhã. Entre o largo do Caquende e a imponência
majestosa do convento do Carmo a Senhora de Vermelho vai rodando e distribuindo
seus raios entre os fiéis, empoleirados nas escadarias e janelas muitos são os
que olham o cortejo de Tempo. Aqui, em Cachoeira, a chegança dos reis magos
coincide com o aniversário de Maria e quando isso ocorre sempre já nos encontramos
um passo à frente na linha tênue que organiza o transcorrer dos dias. Na rua do
Brega pisamos em mel e escutamos os ecos das conversações que vão passando à
história e no jardim grande deixamos escapar nossas orações de agradecimento por
termos sobrevivido até aqui. Ogum se delicia no bar América: os dias de trégua
são a única primavera que conhecem os filhos do deus da guerra. As crianças
correm, se pintam, chutam as latas de cervejas abandonadas no trajeto e
assopram os cabelos desalinhados da deusa de seios enormes. Cachoeira – a maior
das menores cidades do mundo – sofre de antecipação e enterra na véspera o ano
que agoniza. A charanga embala os sonhos, as angústias, os desejos e as
desilusões dos que a acompanham. A charanga marca o ritmo dos que dançam
violentamente banhando com seu suor os paralelepípedos. As famílias se reúnem,
os amigos se abraçam, os amantes se entreolham e o domingo goteja numa
clepsidra de vidro. Em Cachoeira o ano sempre termina num domingo e a primeira
segunda-feira que floresce é sempre um dia fora do tempo. Na terça, a charanga
voltará às ruas para o terno da saudade – e se alguém tem ainda alguma lágrima
para derramar poderá fazer nesse derradeiro instantâneo da festa. Depois tudo
voltará a ser como antes. Quem brigou no embalo terá que esperar até novembro
para revidar – e como sabem esperar os fiéis cachoeiranos. Os fogos são muitos
e é o estampido deles que adormece a tarântula do paraguassú até que na
terça-feira – no terno da saudade – a charanga venha tocar às margens do velho
e silencioso rio lhe recordando que já é hora de começar a tecer todas as
coisas que devem existir. É uma honra que se paga com uma caixa de cerveja a
visita da charanga à casa de alguém – é uma dívida que se adquire a dádiva de
vir de tão longe celebrar assim as passagens que tem que ser feitas. Assim foi
hoje – assim será sempre. Os mais sensíveis podem ser irreversivelmente
afetados pelo ritmo da charanga – até os mais insensíveis são afetados pelo
despertar da tarântula. O comércio reabre. Os da universidade se afastam. O
mercado ressuscita. O rio se cala. A ressaca da cidade, despida de suas
fantasias prateadas, vai se esvaindo. As famílias regressam às suas intimidades
e recatos. As crianças voltam às escolas. Os instrumentos da charanga descansam
na Lira Siciliana e na Minerva. Deixamos de esperar pois já aprendemos que volverá.
Quem vomitou fogo carregará olhos acesos por todo o ano. Quem viu as cinzas de
que são feitas as carnes será noite por todo o ano. Quem derramou sangue nos
paralelepípedos conhecerá a beleza das cicatrizes. Quem não suportou a
inclemência do sol será engolido pelo demônio do esquecimento. Aqui, o ano
acabou antes, como sempre. Ainda é novembro e já estamos em 2020. Um velho e
bom amigo me escreve: o inferno não prospera onde há esperança – eu lhe
respondo: a desgraça não vinga onde toca a charanga. A pulsação do que
nos move para além dos precipícios que nos foram destinados é um prodígio. Que
Nossa Senhora d’Ajuda conceda luz a quem é da luz e escuro a quem é do escuro
& que a memória dos mandús conserve eternamente amolado o fio mineral de
nossos corações. Amém.
nuno g.
Cachoeira, 17 de novembro de
2019.
Cumpadre Nuno,
ResponderExcluirO texto revela fielmente a mágia do terno da alvorada. Quem esteve lá, (re)sentiu e reviveu... Quem não foi, compreendeu os significados desse terno, que antecipa tão fielmente a vida e seus sentimentos...
Um abraço,
Marina Cruz
nuno g,
ResponderExcluirNunca fui nesse evento....e, poucas vezes fui a Cachoeira....
mas, parece q uma das coisas instigantes desse dia de domingo é que trata-se de algo q espalha alegria....e, se é assim tá valendo...
Bjssss
Vívian
Amém
ResponderExcluirA cada novembro me sinto na obrigação de reler esse texto pra encerrar e recomeçar o ano. Saudades, Coroné!
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