para claudio reis e
seu menino, o lorde basquiat
Eram
sete os cavalos e traziam sal nas crinas e memória de flores perfumadas. Eram
sete e saltavam sobre a relva e corriam como o vento e partiam anunciando a
chegança de barcos e mais barcos e mais barcos abarrotados de horizontes e mais
horizontes e mais horizontes. Eram sete barcos e setecentos horizontes montados
sobre sete cavalos que traziam sal nas crinas e memória de perfumadas flores.
Eram sete cavalos com olhos de chuva e patas de areia. Eram sete cavalos que
como o Atlântico suportavam o peso de setecentos barcos e sete mil horizontes.
Eram sete cavalos com olhos de noite e neblina navegando no rio de nossos
corações. Eram setecentos mil rios dentro de um só coração. Eram águas e águas
e águas e memórias de flores perfumadas que embriagavam os sete cavalos e
arrepiavam suas crinas embranquecidas de sal. Eram nove e meia da manhã quando
ele partiu como um raio que quase não produziu trovão. Vi o céu relampejar de
dentro do fosso escuro em que eu estava. Suei e suei e suei como a tampa de uma
cuscuzeira cozinhando macaxeira num fogão à lenha. Vi seus olhos nos olhos dos
sete cavalos. Vi sua tristeza nos sete horizontes esfumaçados. Vi sua coragem
nos sete mil barcos singrando o oceano de meu coração. Eram nove e meia da
manhã e ele já não estava mais entre nós. Eram nove e meia da manhã e seu
espírito se despediu do seu corpo de quatro patas e pelugem alvinegra e partiu.
Eram sete cavalos embriagados saltitando no pasto e escapando das víboras
venenosas semeadas pelos homens barbudos que vieram nos barcos de além-mar. Era
uma chuva que chegava sempre que brincávamos em volta do fogo. Era uma neblina
tão intensa que nossos olhos se fizeram olhos de noite para sobreviver à
errância. Era domingo e ele já não mais estava entre nós e eu vi teus olhos nos
olhos dele que brilhavam nos olhos dos sete cavalos e eu senti o perfume dele
no perfume que emanava dos sete cavalos e eu guardei a memória dele nos sais de
cristais que esbranquiçavam as sete crinas. Eram sete montanhas, sete mares e
uma moto. Uma medalha de São Bento exorcizava o medo. Uma medalha de São Bento
exorcizava a culpa. Uma medalha de São Bento exorcizava a ausência. Eram sete
estradas feitas especialmente para sete cavalos. Eram sete milhões de anos
reduzidos a um feixe de sete milhões de raios de luz numa manhã de domingo. Tua
dor me tocou a pele. Tua tristeza me tocou os ossos. Te entreguei de volta o
chão que um dia me entregastes e deixei que nele permanecessem os sete cavalos
e a memória de alfazema e sândalo. Meu chão é teu e esse domingo é nosso. Sem
saber estivestes aqui buscando a água da leveza na fonte dos metais pesados.
Sem saber viestes abandonar teus excessos nesta caverna onde tudo é excessivo.
Meus cavalos são teus e teus olhos brilharam nos olhos deles quando ele partiu.
Teu chão te devolvo: com afeto, estima e barcos acostumados aos mares revoltos
por tempestades. Eram nove e meia da manhã quando agarrei a primeira víbora e
com os dentes afiados arranquei fora sua cabeça. Eram nove e meia da manhã
quando saciei minha sede com o sangue dessa víbora e com seu chocalho fiz um
colar para o mais antigo dos sete cavalos. Banhei esse chocalho em alfazema e
sândalo e fiz reluzir toda a memória nele contida. Era um cavalo dócil e com
ares infantis que tempos atrás tu acoplara à tua moto para exorcizar tudo o que
pudesse te fazer dano. Era um cavalo como um cavalo foi Basquiat na primeira
infância perdida de Alice. Era um cavalo exorcista como a medalha de São Bento
e sua inscrição em latim. Era domingo e estávamos juntos em algum lugar que não
era aqui nem acolá, num lugar que era estrada atravessando nuvens e rios
cardíacos em direção ao mar. No meu sonho tua tristeza foi recebida por sete
cavalos que te pediram para deixar ele ir para outro lugar. Em meu destino tu
foste um chão para minhas sementes de ar. Hoje tua tristeza é minha e esse
domingo é nosso até que o atabaque receba o açoite último das mãos
avassaladoras daquele que nunca se deixa revelar.
nuno
g.
Cachoeira,
07 de julho de 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário