segunda-feira, 27 de abril de 2020

quarentena


chove e quando chove a terra se alegra
chove e nas águas da chuva vivem as divindades
chove e a suavidade da chuva não oculta a beleza do mundo
chove e faz escuro como nunca antes
chove, filha, e os teus olhos brilham mais que o de costume
chove, filha, e tuas brincadeiras se estendem como os lagartos nos lajedos
chove, filha, e já não sabemos mais se amanhece ou se ainda é madrugada
chove, filha, e na cidade os que até ontem nos abraçavam usam máscaras e nos cumprimentam à distância
chove, filha, e as aldeias onde costumávamos passear estão fechadas pela sabedoria dos que não esquecem de quando a varíola arruinou a vida
chove, filha, e você dorme e sonha com mais um dia de loucuras e aventuras
chove, filha, sobre essa casa que não sendo nossa já é parte do nosso sonho e da nossa semeadura
chove, filha, chove sobre nossos cabelos como choveu um dia sobre a gare de Astapovo
chove como um dia choveu sobre o mar de Neruda
como um dia choveu sobre as pálpebras de Cleópatra
chove e nossos amigos estão enclausurados
chove e seus olhos brilham como duas serpentes que iluminam o futuro
chove e nós não choramos ao ninar teu irmão morto
chove e nós não nos entristecemos ao ninar teu irmão morto
chove e nós acendemos velas, incensos e estrelas no céu
chove e nós alimentamos os cães e aprendemos com Judite a resistir
chove e nós seguimos com nossos planos de viajar por estar terra onde nascemos
de caminhar entre as lhamas do deserto de sal
de escalar as pirâmides relendo os versos da Colorina
chove, os fascistas estão cada dia mais empoderados
o mundo está cada dia mais sinistro e acovardado
os abraços estão suspensos e toda a lógica do tempo foi dissolvida num passe de mágica
chove sobre o vírus da biologia e sobre o fermento da linguagem
sobre os positivistas, os oportunistas e sobre a cova do teu irmão morto
chove e os açudes estão abarrotados
chove e as bibliotecas estão fechadas
chove e as moscas da semana santa não vão embora
chove e nossas línguas são as das serpentes que te acompanham
chove e recordamos os sonhos de São Tomé
chove e recordamos o trem da graciosa
chove e tomamos água de umburana
chove e derramamos um fio de azeite sobre o macarrão com brócolis
chove e não queremos que tudo passe
chove e aprendemos que seria uma estupidez desejar a normalidade
chove e vamos deixando que os animais nos ensinem as artes da nova realidade
chove e a chuva dissolve tudo o que é ridículo e até ontem parecia ser importante
chove e aqui estamos
sem nenhuma noção do tempo
sem nenhuma vontade de fazer de conta que não aconteceu nada
sem nenhum temor às criaturas demoníacas que ameaçam desabar os céus
chove e nós adoramos a chuva como os antigos
chove e nós bebemos as águas da chuva como os antigos
chove e nós limpamos toda a fuligem de asfalto que trazíamos à pele
chove e nós cuidamos de teu irmão morto
chove e nós rimos dos cães destruindo nossos óculos
                                                                       nossos celulares
                                                                       nossa impotência ante o destino
chove e mesmo sob a chuva acendemos o fogo
chove e mesmo sob a chuva adoramos o fogo
chove e mesmo sob a chuva nós tecemos nossa casa de vidro
chove e nós escutamos o que nos diz a chuva
chove e nós veneramos e reverenciamos o que nos sopra o fogo
chove e nós nos aproximamos do que se encontra longe
chove e esta terra nos abraça
chove e este rio nos afaga
chove e rezamos e comemos pipoca e assistimos desenhos animados
chove e nós corremos sob a chuva sem nenhuma veste que oculte a beleza de nossos corpos
chove e nós aceitamos a carícia dos deuses
chove e sorrimos e nos alegramos e agradecemos essa certeza de que nada será como antes
chove e sabemos que os generais planejam matar uma parcela da humanidade
chove e sabemos que nossos pés têm asas e sabem galopar
chove e nossas intimidades guardam a dor preciosa com que se fazem as delicadezas
chove e nós devoramos o que aprendemos a cozinhar
chove e nós vestimos o que aprendemos a tecer
chove e nós sonhamos os medos que perdemos
chove e a chuva nos protege
do vírus, do fascismo e de toda a maldade do mundo
chove e a chuva nos traz os versos que nos ajudam a respirar
chove e a chuva nos traz a memória de um futuro que nos pertencerá
chove sobre a necropolítica e os tiranos amordaçados no porão
chove sobre o silêncio dos cúmplices e sobre a pilha de fariseus amontoados nas cidades
chove sobre as cidades e suas cicatrizes
chove sobre o sangue que pulsa no olhar feroz da coruja branca
chove sobre a ceia imunda dos assassinos de Marielle
chove sobre o luto de Vivian
chove sobre o estandarte de couro onde ferramos o brasão da agônica esperança
filha, chove sobre a cova de teu irmão morto
chove e não posso ir até lá acender sua vela
e não posso ir até lá acender seu incenso
e não posso ir até lá aquecer seu frio
chove e sei que você o tem em seus braços
chove e sei que Vivian o traz em seus braços
chove e sei que os fascistas venceram e
que o sinal está fechado para nós que somos jovens
chove e sei que sim já somos como nossos pais
chove sobre o mistério inescrutável da santíssima Trindade
chove sobre as armas de Ogum Beira-Mar
chove sobre a magia da sereia desse rio que é todos os rios
filha, chove sobre a pele fria dessas víboras que vêm até teus pés
filha, chove sobre estas serpentes que te acompanham como acompanha o sal ao mar
filha, chove sobre nós
sobre nossos desejos
sobre nossas vontades
e como nossos ancestrais somos por esta chuva abençoados
o ar segue alimentando o fogo
e os ossos dos mortos ainda faíscam na memória desta imensidão que nos abriga
filha, o que está ocorrendo não é algo que vá passar
filha, o que está ocorrendo nos atravessa como um raio atravessa uma pedra
filha, o que está ocorrendo também tem sua beleza
também guarda seu ensinamento
também nos ajuda a seguir caminhando em direção ao nada
filha, não haverá mais outro dia como os que haviam antes
as palavras que tínhamos já não tem mais serventia
já não descrevem o que vivemos
                                 o que sentimos
                                 o que pensamos
o jaguar ainda vive – e só ele pode nos fazer sorrir neste silêncio
o jaguar ainda vive – e nele repousa nossa aurora
o jaguar tem hoje a cor de nossos ossos
o jaguar tem hoje a cor dos ossos de nossos mortos
não existe lugar para onde retornar
tudo está contaminado
e fomos nós que contaminamos tudo
mas ainda chove
e a chuva nos traz uma sensação imprevista de fúria e felicidade
a chuva nos traz a memória de homens que a varíola levou aos infernos
a chuva nos traz a memória devastadora da cólera
a chuva nos faz sorrir e desejar que nunca mais nada volte ao normal
a chuva, a neblina, o porvir
a pele do jaguar, as serpentes que te acompanham
e essa doçura com que tu manipulas venenos
nossa impaciência e nossa maneira única de rolar no chão
de tocar a lama
de afastar as moscas que se recusaram a ir depois da semana santa
nossos cães, teu irmão morto e a memória de Janaína que já teria mais de vinte anos
tua gata, a neblina e a esperança que nada volte ao normal
enquanto chove vamos montando nosso lego
estudando os caminhos pelos quais passaremos com nosso carro-casa
desde esse aprazível precipício até a margem indizível onde sete anos atrás enterramos
teu umbigo, tua placenta e todas
as remotas certezas que trouxestes das vidas passadas,
chove sobre nossas fosforescentes carcaças,
chove...

nuno g.
Cachoeira, 27 de abril de 2020

sábado, 18 de abril de 2020

Nove marzo duemilaventi, de Mariangela Gualtieri

Questo ti voglio dire
ci dovevamo fermare.
Lo sapevamo. Lo sentivamo tutti
ch’era troppo furioso
il nostro fare. Stare dentro le cose.
Tutti fuori di noi.
Agitare ogni ora — farla fruttare.

Ci dovevamo fermare
e non ci riuscivamo.
Andava fatto insieme.
Rallentare la corsa.
Ma non ci riuscivamo.
Non c’era sforzo umano
che ci potesse bloccare.

E poiché questo
era desiderio tacito comune
come un inconscio volere —
forse la specie nostra ha ubbidito
slacciato le catene che tengono blindato
il nostro seme. Aperto
le fessure più segrete
e fatto entrare.
Forse per questo dopo c’è stato un salto
di specie — dal pipistrello a noi.
Qualcosa in noi ha voluto spalancare.
Forse, non so.

Adesso siamo a casa.

È portentoso quello che succede.
E c’è dell’oro, credo, in questo tempo strano.
Forse ci sono doni.
Pepite d’oro per noi. Se ci aiutiamo.
C’è un molto forte richiamo
della specie ora e come specie adesso
deve pensarsi ognuno. Un comune destino
ci tiene qui. Lo sapevamo. Ma non troppo bene.
O tutti quanti o nessuno.

È potente la terra. Viva per davvero.
Io la sento pensante d’un pensiero
che noi non conosciamo.
E quello che succede? Consideriamo
se non sia lei che muove.
Se la legge che tiene ben guidato
l’universo intero, se quanto accade mi chiedo
non sia piena espressione di quella legge
che governa anche noi — proprio come
ogni stella — ogni particella di cosmo.

Se la materia oscura fosse questo
tenersi insieme di tutto in un ardore
di vita, con la spazzina morte che viene
a equilibrare ogni specie.
Tenerla dentro la misura sua, al posto suo,
guidata. Non siamo noi
che abbiamo fatto il cielo.

Una voce imponente, senza parola
ci dice ora di stare a casa, come bambini
che l’hanno fatta grossa, senza sapere cosa,
e non avranno baci, non saranno abbracciati.
Ognuno dentro una frenata
che ci riporta indietro, forse nelle lentezze
delle antiche antenate, delle madri.

Guardare di più il cielo,
tingere d’ocra un morto. Fare per la prima volta
il pane. Guardare bene una faccia. Cantare
piano piano perché un bambino dorma. Per la prima volta
stringere con la mano un’altra mano
sentire forte l’intesa. Che siamo insieme.
Un organismo solo. Tutta la specie
la portiamo in noi. Dentro noi la salviamo.

A quella stretta
di un palmo col palmo di qualcuno
a quel semplice atto che ci è interdetto ora —
noi torneremo con una comprensione dilatata.
Saremo qui, più attenti credo. Più delicata
la nostra mano starà dentro il fare della vita.
Adesso lo sappiamo quanto è triste
stare lontani un metro.

Mariangela Gualtieri

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Voltas-de-rua

Se for para lanchar lá, na estrela; se for pra levar à casa, na São Francisco. Vivian deu de observar as flores e me acordou assim: essas florzinhas brancas murcham no fim do dia e se abrem pela manhã! Cheiro de cuscuz e incenso, água com desinfetante e roupas pelo chão. Coelho, chocolate e um poema de uma páscoa que vai longe. Se for para lanchar lá, na estrela: domingo sem café demora mais a acender, domingo de chuva desconhece meio-dia. Esse ano a quaresma acaba, mas a quarentena segue: acordamos e o Asno-mor ainda estava lá. Ele e sua quadrilha. Ele e os valores que são o pão nosso e o fermento da estupidez que nos assola a cada dia. Ele e os seus traidores pelejando para provar a si mesmos que eles não são assim: são. Se for para levar à casa, na São Francisco: perto demais da divina comédia humana, longe do porto desabitado onde descansa meu coração selvagem. Cheiro de cuscuz e incenso, abril despedaçado pelos quatro cantos da casa. Água com desinfetante, cigarros e ausência de café. Memória de um poema antigo da páscoa de dois mil e dezesseis – passageira e acinzentada. O medo dos medos imaginários desabrochando em meio ao meu medo do teu medo de Górki. Envelhecendo sob o fascismo, envelhecendo, envelhecendo – com proeza e fascínio, envelhecendo, simplesmente – em busca de um refúgio onde inexistam adjetivos. Cheiro de cuscuz, incenso e ovo de chocolate. Os índios da América Central sempre desconfiaram da ressurreição, esse ano a quaresma recebeu uma overdose de fermento. Sem pressa, caminho à mercearia em busca de um pouco de pó de café. Sem pressa, escrevo e fumo. Sem pressa, minha ironia sorri ao escutar eles dizendo que não eram o que são e que nunca serão o que são. Sem pressa, esfrego o rodo e lavo o chão da casa. Ouço Belchior: eu tenho medo e medo está por fora / o medo anda dentro do teu coração. Se for para lanchar lá, na estrela; se for para levar à casa, na São Francisco: faca de ponta e meu punhal que corta / e o fantasma escondido no porão. Sonhei com duas serpentes e uma inexplicável saraivada de fogos de artifício. Uma das serpentes era grande, a outra pequena. Tenho lido mais sobre política do que deveria – temo me contaminar. Era quatro da manhã e os cães já haviam estragado meu celular, os óculos de Vivian e a varinha mágica de Alice. Não resisti e me deparei com uma constatação terrível e óbvia – ainda mais terrível por óbvia: numerados de a à j os dez fatos incontestáveis do fascismo tupiniquim. A famiglia no poder, Lincoln Secco às quatro da manhã: feliz páscoa rebanho! Necessito urgentemente de café: longo, forte, amargo. Os antigos diziam que chegaria o tempo em que a roda grande giraria dentro da órbita da roda pequena: imagino que a serpente pequena devorou a serpente grande e que esse foi o fim do sonho. Tenho vinte e cinco anos de sonho e de sangue. O Asno-mor tem razão: ele representa e representa muito; o resto é farsa, miopia e desejos nossos confundidos com expectativas. Tem muito agrotóxico envenenando a terra, os rios tão abarrotados de química e ignorância. Tem muito antibiótico nas prateleiras da farmácia, nossos corpos tão abarrotados de veneno e solidão. Tem muito general no governo e muito capital querendo executar a necropolítica. Acendo outro cigarro, regresso à rede na varanda. As serpentes e os fogos de artifício, inexplicáveis. Na terra é pleno abril. Abro as janelas e deixo a chuva molhar o domingo. Banho menino-deus com o pouco de ayahuasca que me resta. E espero, sem pressa, a hora certa de ir à mercearia em busca de um pouco de pó de café. Antes uma guerra, seria melhor – comentou dona Antônia. Só os poetas e os seres que rastejam conseguem ver na neblina, me escreveu Gabriel. As flores brancas murcham ao entardecer e voltam a abrir quando amanhece! – observou Vivian. Tendo mandioca pra gente fazer farinha tá bom meu filho, falou a mulher do Moura enquanto fumava um cigarro de palha sentada nas madeiras do forno da casa de farinha. Fervo a água, o aroma de café incendeia o domingo: feliz páscoa, lembrarei deste dia quando a primeira peste passar. Todos lembraremos. Dos óculos, do celular e da varinha mágica que os cães destruíram. Todos lembraremos. Das dez razões, enumeradas por Lincoln Secco, pelas quais a segunda peste será mais duradoura e devastadora que essa primeira. Sim, Lincoln, um pouco de positivismo muita falta tem feito ao mundo – e agora, que aprendi isso da maneira mais árdua possível, posso celebrar, sem pavor nem pânico, o agônico prazer de zombar do espanto deles se negando a reconhecerem a própria imagem refletida no espelho d’água.

nuno g.
Cachoeira 12 de abril de 2020
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sábado, 11 de abril de 2020

me(n)ta(l)fisicamente

viv(e)ian
em algum lugar – além deste canto de pássaros
viv(e)ian
em algum não-lugar – além desta ópera enfadonha de sapos
viv(e)ian
em algum rincão perdido do vale das maçãs
viv(e)ian
em algum lugar qualquer daquela floresta de abikus
viv(e)ian
em alguma das ilhas para onde voam as crianças d’água
viv(e)ian
em tua mãe, em tua irmã, em mim
viv(e)ian
nessa distância, nesse silêncio, nesse inchaço
viv(e)ian
no pão com manteiga, no arroz com feijão, na rosa dos ventos
viv(e)ian
nas andorinhas embaladas nos sinos dos presépios
nos mugidos das vacas assustadas pela chuva
nos meus cabelos assanhados
& na brasa acesa de meus cigarros
viv(e)ian
nas cartas não-correspondidas
na pintura de esperma & fezes que adorna o galho podre da árvore
no dente ausente na boca do girassol
na carne tatuada pelos ferozes extraterrestres
viv(e)ian
nos mísseis que os iranianos prometem atirar nas Colinas de Golã
nos arabescos de nossas mirações matinais
nas migrações dos elefantes ao cemitério onde nasceram
viv(e)ian
e me diz o que te soprou aquele vento
viv(e)ian
e me diz o que te ardeu aquele fogo
viv(e)ian
e segue
livre
à
sangria sem ave
sem aleluia
& sem disfarce
viv(e)ian
em mim, em tua irmã, em tua mãe
que em ti se fez lágrima & placenta desbotada
viv(e)ian
e nos abandona
ao vazio que ecoa e nos clama
viv(e)ian
por que nós sim não sabíamos voar
nem semear clorofila no quintal
viv(e)ian
neste terreno baldio que é o sagrado coração da terra
nas pérolas deste terço e na circunferência do sexo de tua mãe
no brilho do olhar de tua irmã
viv(e)ian
e não fale com as paredes do oásis
viv(e)ian
e ignore as fronteiras do deserto
viv(e)ian
e corre sem-pressa até os trilhos onde corre o trem do futuro
viv(e)ian
e se desfaz do peso desta matéria que te envolvia
viv(e)ian
e distribui flores entre os símios que escrevem poesia
dorme Ian,
dorme e descansa
deixei a rede armada na varanda
um chá pronto à margem da fogueira
e essas palavras de despedida lavradas em campos de centeio & ervas finas.

Toróró, 04 de janeiro de 2020.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

quinta-feira, 9 de abril de 2020

chelsea girl

Muitas flautas e do outro lado do rio, outro rio. Muitas flautas e do outro lado do fogo, outro fogo. Muitas flautas e do outro lado do silêncio, outro silêncio. Muitas flautas e um longo dia com um sol demorado. Muitas flautas e do outro lado da água, os mortos. Os mortos nadando e se refrescando e sorrindo e. Do outro lado da morte, outra morte – e depois dela, outra morte ainda e uma morte mais e outra morte numa série de encadeamento infinito. Muitas flautas e do outro lado do infinito, outro infinito. Muitas flautas. E além das flautas, o trem. O trem que segue seguindo às Minas Gerais todos os dias. O trem com seu maquinista hiper-simpático. O trem e a neblina que chegou antes. A neblina que não quis esse ano esperar os festejos de junho. A neblina e tudo o que lhe é próprio: a umidade e os seres que vivem na cor cinza. Na neblina, nossos medos imaginários se comportam como cães fiéis e famintos. Na neblina, o rio é mais serpente do que antes. Na neblina, tudo que reluz é promessa de firmamento, anunciação e café quente. Na neblina, o rio é tão serpente como nunca. Na neblina, nossos corpos se sentem frágeis, adoráveis e transparentes. As sombras angelicais e a crina do vento. Na neblina, nós e o nada ante o tempo dissolvido. De joelhos, sangrando de tanto chão. Locomovendo-se em direção à miséria que ainda não ousamos nomear. Cio de onça, a coleção de escaravelhos, chave de harmonia. Asas nos pés sonhando trens que vão às minas. Hora da água: roguemos ao silêncio como da primeira vez. Hora das frestas: roguemos ao infinito e à nova eternidade que nos paquera como paquerávamos nas matinês. Hora dos precipícios e das cousas mortas: assim. Muitas flautas e café. E, do outro lado, mais café e som de flautas. Passa o carro do ovo, passam pássaros, passa a nuvem e o trem. Tudo parece estar indo às minas. A luz requentada de uma lua de agosto cintila nos olhos de Judite. Hoje, nem pensar em voltas-de-rua. Hoje, sabemos algo mais sobre a eternidade e, por supuesto, somos menos.

08/09 de abril de 2020.
nuno g.