Muitas flautas e do outro lado do rio, outro rio. Muitas flautas e do outro lado do fogo, outro fogo. Muitas flautas e do outro lado do silêncio, outro silêncio. Muitas flautas e um longo dia com um sol demorado. Muitas flautas e do outro lado da água, os mortos. Os mortos nadando e se refrescando e sorrindo e. Do outro lado da morte, outra morte – e depois dela, outra morte ainda e uma morte mais e outra morte numa série de encadeamento infinito. Muitas flautas e do outro lado do infinito, outro infinito. Muitas flautas. E além das flautas, o trem. O trem que segue seguindo às Minas Gerais todos os dias. O trem com seu maquinista hiper-simpático. O trem e a neblina que chegou antes. A neblina que não quis esse ano esperar os festejos de junho. A neblina e tudo o que lhe é próprio: a umidade e os seres que vivem na cor cinza. Na neblina, nossos medos imaginários se comportam como cães fiéis e famintos. Na neblina, o rio é mais serpente do que antes. Na neblina, tudo que reluz é promessa de firmamento, anunciação e café quente. Na neblina, o rio é tão serpente como nunca. Na neblina, nossos corpos se sentem frágeis, adoráveis e transparentes. As sombras angelicais e a crina do vento. Na neblina, nós e o nada ante o tempo dissolvido. De joelhos, sangrando de tanto chão. Locomovendo-se em direção à miséria que ainda não ousamos nomear. Cio de onça, a coleção de escaravelhos, chave de harmonia. Asas nos pés sonhando trens que vão às minas. Hora da água: roguemos ao silêncio como da primeira vez. Hora das frestas: roguemos ao infinito e à nova eternidade que nos paquera como paquerávamos nas matinês. Hora dos precipícios e das cousas mortas: assim. Muitas flautas e café. E, do outro lado, mais café e som de flautas. Passa o carro do ovo, passam pássaros, passa a nuvem e o trem. Tudo parece estar indo às minas. A luz requentada de uma lua de agosto cintila nos olhos de Judite. Hoje, nem pensar em voltas-de-rua. Hoje, sabemos algo mais sobre a eternidade e, por supuesto, somos menos.
08/09 de abril de 2020.
nuno g.
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