segunda-feira, 13 de abril de 2020

Voltas-de-rua

Se for para lanchar lá, na estrela; se for pra levar à casa, na São Francisco. Vivian deu de observar as flores e me acordou assim: essas florzinhas brancas murcham no fim do dia e se abrem pela manhã! Cheiro de cuscuz e incenso, água com desinfetante e roupas pelo chão. Coelho, chocolate e um poema de uma páscoa que vai longe. Se for para lanchar lá, na estrela: domingo sem café demora mais a acender, domingo de chuva desconhece meio-dia. Esse ano a quaresma acaba, mas a quarentena segue: acordamos e o Asno-mor ainda estava lá. Ele e sua quadrilha. Ele e os valores que são o pão nosso e o fermento da estupidez que nos assola a cada dia. Ele e os seus traidores pelejando para provar a si mesmos que eles não são assim: são. Se for para levar à casa, na São Francisco: perto demais da divina comédia humana, longe do porto desabitado onde descansa meu coração selvagem. Cheiro de cuscuz e incenso, abril despedaçado pelos quatro cantos da casa. Água com desinfetante, cigarros e ausência de café. Memória de um poema antigo da páscoa de dois mil e dezesseis – passageira e acinzentada. O medo dos medos imaginários desabrochando em meio ao meu medo do teu medo de Górki. Envelhecendo sob o fascismo, envelhecendo, envelhecendo – com proeza e fascínio, envelhecendo, simplesmente – em busca de um refúgio onde inexistam adjetivos. Cheiro de cuscuz, incenso e ovo de chocolate. Os índios da América Central sempre desconfiaram da ressurreição, esse ano a quaresma recebeu uma overdose de fermento. Sem pressa, caminho à mercearia em busca de um pouco de pó de café. Sem pressa, escrevo e fumo. Sem pressa, minha ironia sorri ao escutar eles dizendo que não eram o que são e que nunca serão o que são. Sem pressa, esfrego o rodo e lavo o chão da casa. Ouço Belchior: eu tenho medo e medo está por fora / o medo anda dentro do teu coração. Se for para lanchar lá, na estrela; se for para levar à casa, na São Francisco: faca de ponta e meu punhal que corta / e o fantasma escondido no porão. Sonhei com duas serpentes e uma inexplicável saraivada de fogos de artifício. Uma das serpentes era grande, a outra pequena. Tenho lido mais sobre política do que deveria – temo me contaminar. Era quatro da manhã e os cães já haviam estragado meu celular, os óculos de Vivian e a varinha mágica de Alice. Não resisti e me deparei com uma constatação terrível e óbvia – ainda mais terrível por óbvia: numerados de a à j os dez fatos incontestáveis do fascismo tupiniquim. A famiglia no poder, Lincoln Secco às quatro da manhã: feliz páscoa rebanho! Necessito urgentemente de café: longo, forte, amargo. Os antigos diziam que chegaria o tempo em que a roda grande giraria dentro da órbita da roda pequena: imagino que a serpente pequena devorou a serpente grande e que esse foi o fim do sonho. Tenho vinte e cinco anos de sonho e de sangue. O Asno-mor tem razão: ele representa e representa muito; o resto é farsa, miopia e desejos nossos confundidos com expectativas. Tem muito agrotóxico envenenando a terra, os rios tão abarrotados de química e ignorância. Tem muito antibiótico nas prateleiras da farmácia, nossos corpos tão abarrotados de veneno e solidão. Tem muito general no governo e muito capital querendo executar a necropolítica. Acendo outro cigarro, regresso à rede na varanda. As serpentes e os fogos de artifício, inexplicáveis. Na terra é pleno abril. Abro as janelas e deixo a chuva molhar o domingo. Banho menino-deus com o pouco de ayahuasca que me resta. E espero, sem pressa, a hora certa de ir à mercearia em busca de um pouco de pó de café. Antes uma guerra, seria melhor – comentou dona Antônia. Só os poetas e os seres que rastejam conseguem ver na neblina, me escreveu Gabriel. As flores brancas murcham ao entardecer e voltam a abrir quando amanhece! – observou Vivian. Tendo mandioca pra gente fazer farinha tá bom meu filho, falou a mulher do Moura enquanto fumava um cigarro de palha sentada nas madeiras do forno da casa de farinha. Fervo a água, o aroma de café incendeia o domingo: feliz páscoa, lembrarei deste dia quando a primeira peste passar. Todos lembraremos. Dos óculos, do celular e da varinha mágica que os cães destruíram. Todos lembraremos. Das dez razões, enumeradas por Lincoln Secco, pelas quais a segunda peste será mais duradoura e devastadora que essa primeira. Sim, Lincoln, um pouco de positivismo muita falta tem feito ao mundo – e agora, que aprendi isso da maneira mais árdua possível, posso celebrar, sem pavor nem pânico, o agônico prazer de zombar do espanto deles se negando a reconhecerem a própria imagem refletida no espelho d’água.

nuno g.
Cachoeira 12 de abril de 2020
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