sábado, 11 de abril de 2020

me(n)ta(l)fisicamente

viv(e)ian
em algum lugar – além deste canto de pássaros
viv(e)ian
em algum não-lugar – além desta ópera enfadonha de sapos
viv(e)ian
em algum rincão perdido do vale das maçãs
viv(e)ian
em algum lugar qualquer daquela floresta de abikus
viv(e)ian
em alguma das ilhas para onde voam as crianças d’água
viv(e)ian
em tua mãe, em tua irmã, em mim
viv(e)ian
nessa distância, nesse silêncio, nesse inchaço
viv(e)ian
no pão com manteiga, no arroz com feijão, na rosa dos ventos
viv(e)ian
nas andorinhas embaladas nos sinos dos presépios
nos mugidos das vacas assustadas pela chuva
nos meus cabelos assanhados
& na brasa acesa de meus cigarros
viv(e)ian
nas cartas não-correspondidas
na pintura de esperma & fezes que adorna o galho podre da árvore
no dente ausente na boca do girassol
na carne tatuada pelos ferozes extraterrestres
viv(e)ian
nos mísseis que os iranianos prometem atirar nas Colinas de Golã
nos arabescos de nossas mirações matinais
nas migrações dos elefantes ao cemitério onde nasceram
viv(e)ian
e me diz o que te soprou aquele vento
viv(e)ian
e me diz o que te ardeu aquele fogo
viv(e)ian
e segue
livre
à
sangria sem ave
sem aleluia
& sem disfarce
viv(e)ian
em mim, em tua irmã, em tua mãe
que em ti se fez lágrima & placenta desbotada
viv(e)ian
e nos abandona
ao vazio que ecoa e nos clama
viv(e)ian
por que nós sim não sabíamos voar
nem semear clorofila no quintal
viv(e)ian
neste terreno baldio que é o sagrado coração da terra
nas pérolas deste terço e na circunferência do sexo de tua mãe
no brilho do olhar de tua irmã
viv(e)ian
e não fale com as paredes do oásis
viv(e)ian
e ignore as fronteiras do deserto
viv(e)ian
e corre sem-pressa até os trilhos onde corre o trem do futuro
viv(e)ian
e se desfaz do peso desta matéria que te envolvia
viv(e)ian
e distribui flores entre os símios que escrevem poesia
dorme Ian,
dorme e descansa
deixei a rede armada na varanda
um chá pronto à margem da fogueira
e essas palavras de despedida lavradas em campos de centeio & ervas finas.

Toróró, 04 de janeiro de 2020.

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