quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Hermenegildo.

Hermenegildo passou antes do sol nascer.

Sua silhueta a cavalo recortou a paisagem.

Me deu bom dia com voz de rio.

Hermenegildo, perfumado de alecrim e azeite.

Com seus olhos de facão e foice.

Abrindo o caminho de volta à terra arrasada.

*  *  *

Hermenegildo passou e o sol nasceu.

Sua voz de rio estancou ante meu amanhecer.

E com as ferramentas suas fui abrindo o caminho.

Hermenegildo me soprou um silêncio frio.

E me apontou com o olhar as três Marias ainda no céu.

Outra vez a hora de inventar um dialeto para bendizer.

*  *  *

Reza em mim que eu te perco da salvação.

Judite e Adélia cruzaram o caminho.

Alguém serviu um prato de comida aos deuses e outro aos cães.

A lua, minguante e terna, desapareceu atrás da serra.

Reza em mim que eu te salvo da perdição.

Sonhei com o sal, o mar, a sede e o corpo de Larissa.

Ela estava mais velha e eu ainda era um menino.

Nossas Marias haviam seguido viagem.

E nossos corpos celebravam todas as passagens.

*  *  *

Reza em mim e chove que essa seca já muito tarda.

Hermenegildo pronunciou o nome de Miguel sobre os maturis.

O rio está bonito hoje - na voz noturna de Larissa o tempo girou ao contrário.

Amanhã nossas Marias estarão juntas novamente.

Nas matas sombrias e no esverdeado coração das águas.

*  *  *

Suportar a dor extenuante.

Abraçar as brasas que não se extinguem.

Reza em mim e o sol se fará dicionário para a cura e para a morte.

*  *  *

Reza em mim e me rega com fogo.

Todas as estrelas no olhar de Hermenegildo.

Sonhei com Larissa coberta de sal e vestida de azul na praia do Montecristo.

Envelheci tanto que me tornei mais jovem do que o dia em que nasci.

O tempo se enrodilhou nos seus cabelos encaracolados.

Semeou serpentes e arco-íris entre eles.

E um vento de quarta-feira nos recordou nossas Marias.

*  *  *

Sentamos numa pedra.

Avistamos o Gavião.

Reza em mim e será como se me rezares eternamente.


nuno g.

Toróró, 13/12/2023.

Um comentário:

  1. Sua narrativa poética me lembra Machado de Assis, a ironia, o humor ácido, a crueldade, os devaneios lúdicos, tudo muito dentro de imagens tão bonitas e líricas que o leitor por mais que perceba o que é roupa e o que é corpo, já está de tal forma enebriado, que permanece no êxtase incapacitado de interromper para reverberar alguma opinião, visão, expressão é uma escrita/,lida que deixa o leitor em estado de poesia .

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