domingo, 18 de fevereiro de 2024

Quaresma.

A lua amarela em quarto-crescente e as primeiras moscas.

Coração é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Nas nuvens se avistam formas de animais.

Uma tartaruga.

Um capote.

Um urso.

Um galo.

Um avião da panair.

Ouço Mãe Hilda me chamar - é só o resquício do sonho.

Empatamos o derby no último minuto.

Chove. Chove. Chove.

Quatro da manhã, o segurança do Hercílio Luz me escolta:

Onde é que fica a Azul?

Aponta com cara feia e amarrada a fila do check-in.

Na revisão do raio-x a máquina apita uma vez.

Tiro as moedas do bolso.

A máquina apita uma segunda vez.

Tiro mais moedas do bolso.

A máquina apita uma terceira vez.

Tiro a carteira e o cinto.

A máquina não apita.

O que é isso?

Um salame.

Posso conferir?

Sim.

Você pode, por favor, abrir?

Pode abrir você, mas não come.

Saí com um salame desembalado e o cinto quebrado.

Empatamos o derby no último minuto.

Em Belo Horizonte muita neblina atrasa a aterrisagem.

Em Belo Horizonte muita neblina atrasa a decolagem.

Meus ouvidos quase estouram quando chegamos no aeroporto 2 de julho.

Trago a medalha de Gaeth no bolso e uma febre desconhecida.

A raiz e as folhas guardam o silêncio e a guerra.

Todas as árvores guardam suas próprias feridas.

Saudade é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Na febre se vê coisas que se assemelham à coisas.

Me falta permissão para prosseguir.

Me falta permissão para dizer a história dos nãos.

Me falta permissão.

Empatamos o derby no último minuto.

Lua amarela e chuva.

Meus ouvidos prestes a explodir.

Francine envia à Alice foto do parto de uma gata.

Lari me envia uma foto minha com Assucena na janela da casa do Almirante.

Uma febre me engole e mergulha meu corpo num estranho estado de dispersão.

Não fui à Valença, necessitava dormir.

Talvez hoje eu peça. Talvez hoje eu obtenha. Talvez.

Morte é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Silêncio, resguardo, concentração.

Talvez um dia eu tenha a permissão para contar a história dos nãos.

Do circo. Do aniversário. Dos passeios de barco. Dos churrascos.

O inferno das crianças são os adultos.

Sobrevivi a três aeroportos e à história dos nãos.

Com a pedra no peito e a espada no coração.

Assistimos a luneta do tempo com a exuberante Hermila Guedes.

O inferno das crianças são os adultos.

Silêncio é uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Sobrevivi a muitos assassinatos, 47 quaresmas e rios de areias movediças.

O piratinha me aguardava no meio do bambuzal.

Dei na chave e acelerei.

Comprei bolo de laranja e pães em Santo Amaro.

Mergulhado na febre fui sorrindo pela estrada.

Como se o meu corpo fosse estranho à minha consciência.

Os ouvidos completamente tapados.

Os tendões inteiramente inflamados.

A memória do ódio. A memória dos nãos. A desmemória do mundo.

Vagamente recordo de Gaeth comentar sobre os voos da  lufthansa.

Outra vez o avião da panair cruza as nuvens da minha poesia.

Num sonho muito antigo quase me tornei minha mãe e meu pai.

Num sonho muito antigo escutei alguém me chamar.

Num sonho muito antigo tudo era água, fogo e sangue.

Recolho as moedas da bandeja do raio-x do aeroporto.

Faço do xale que Gaeth me emprestou um cinto e sigo.

Amor, faz um cuscuz com ovo, você que é o nordestino.

A ânsia de desejar e o tédio de possuir, livremente adaptado de Arthur Schopenhauer...

Borboletas amarelas. Flores amarelas. Incerta desolação.

Já botei o cuscuz.

Já desço pra fazer os ovos.

A ausência de Alice aqui.

A lembrança de Bruno Tolentino exaltando Cruz & Sousa.

A lembrança de Bruno Tolentino denunciando a mediocridade de Ana Cristina Cesar.

A lembrança de Bruno Tolentino preso por porte de cocaína escrevendo suas baladas.

Vem comer com a gente?

Claro!

Assucena ergue a cabeça buscando a irmã.

Assucena ergue a cabeça e encontra a ausência da irmã.

A lua é uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Lua.

Minha sombra está suficientemente acostumada a devastações.

Nas nuvens vejo apenas recordações de animais que o vento dissipou.

O cheiro do cuscuz sobe as escadas.

A chuva para.

Um dia conto a história dos nãos que me perseguem.

O inferno das crianças são os adultos.

No coração da lua enterrei os primeiros dias da quaresma.

Com suas moscas e suas exigências de jejuns.

O vizinho aumenta o volume do reggae.

A voz de Edson Gomes se espraia sobre o vale.

No livro da morte está a história do samurai negro que conversava com deus.

No livro da morte está a história dos nãos que não tenho permissão para narrar.

Nas paredes do apartamento 102 do edifício Grão-Pará minhas jovens mãos escreveram um dia:

escrevo como os prisioneiros que escrevem nas paredes com sangue e fezes...

Aquele apartamento não existe mais.

Aquele edifício não existe mais.

Aquelas jovens mãos não existem mais.

Somente as baladas sobre a aprendizagem da solidão seguem existindo.

Era uma vez um castelo, um poeta e uma bailarina.

Era uma vez...


Alice levou a lua amarela e o cheiro de Assucena.

Tempo é uma árvore que cresce no coração azul do Mundo.



nuno g.

Toróró, 18 de fevereiro de 2024.



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