Isso é um içá!?
Sim - e lembrei do sítio do pica-pau amarelo entre as cidades mortas.
Hoje caíram tanajuras, não chove - me disse uma velha na fisioterapia; choveu.
Sonhei com a montanha mais alta do mundo.
Só a morte e os vaga-lumes sobreviviam ali.
Quando eu era menina catava içás para minha vó fazer farofa - mas eu não comia.
Depois que a velha falou, uma jovem comentou o mesmo, mas havia nojo em sua voz.
De tudo que Bruno me falou retive a imagem poética do guerreiro que corta o ar com sua espada.
A inutilidade do gesto o torna ainda mais poético.
Em tudo que Gabi me falou havia uma certa sabedoria prática e um amor ao outro que me é estranho.
Impossível não recordar São Francisco de Assis.
Ou certo saber que nos diz que amadurecer é se deixar de lado.
Que gosto terá bunda de tanajura?
No alto dessa montanha do sonho havia um descampado inabitável.
Só a morte e os vaga-lumes se faziam presentes.
Os infortúnios do corpo e da alma são mensageiros de algo.
Só o difícil interessa. Só o amargo desmemoriza.
As coisas que eu gostaria de esquecer nunca serão esquecidas.
Encontro Don Juan onde menos espero.
Em um livro de psicanálise sobre a solidão.
A voz de Lucas invade minha sala com um convite.
As coisas que recordo agora não são da ordem do que pode ser dito.
Alice está longe e está próxima.
Havia nenhuma outra luz na montanha além da dos vaga-lumes.
Lari volta a sangrar.
Será que as mulheres são ainda mais fascinantes por sangrarem sem morrer?
Thiago de Mello: faz escuro, mas eu sonho.
E sonhar é uma benção.
Ainda quando se perdeu toda uma infância entre pesadelos.
O que eu não terminei de te contar Gabi é que sim houve um tempo em que eu temia a morte.
Temia tanto que evitava dormir, pois todas as noites ela me perseguia em sonhos terríveis.
Isso durou anos - bem mais de uma década.
E nisso vi escoar pelo ralo um tempo precioso da vida.
Depois perdi o medo e, junto com ele, perdi também o amor a esse mundo aqui.
No deserto entendi que os derrotados são sempre os que temem a morte.
Meu avô me repetia algumas coisas todos os dias.
Que ele morreria antes de mim e que eu deveria enterrá-lo e seguir.
Que ele gostaria que isso ocorresse depois dos meus quinze anos.
Que não seria natural ele presenciar minha morte pois isso seria uma perversão da lei natural.
O hálito de álcool não turvava suas palavras.
Nem tudo ocorreu como ele gostaria.
Minha infância terminou quando ele morreu.
Minha solidão é sagrada - e todas as vezes que desacreditei nisso me fodi.
A imagem que retive das falas do Bruno se desdobra à minha frente.
Um guerreiro irado corta o ar com a lâmina afiada de sua espada.
O gesto é ainda mais poético por ser de todo inútil.
O vaticínio da velha estava errado, choveu.
As bundas das tanajuras sabem à proteína pura.
Aquela montanha mais alta do mundo é o México onde está enterrado a placenta de Alice.
Só a morte e os vaga-lumes parecem ter força de chegar lá outra vez.
Desde o nascimento de Assucena duvido de minha carcaça.
A dor me tirou da estrada. E essa dor se alojou em minha alma.
Sempre fui triste e a alegria sempre me pareceu fútil.
Hoje gostaria de ouvir apenas o silêncio.
A voz da morte. A chuva de tanajuras.
E a melancolica e frágil luminosidade dos vaga-lumes.
nuno g.
Toróró, 21 de fevereiro de 2024.
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