quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Içá

Isso é um içá!?

Sim - e lembrei do sítio do pica-pau amarelo entre as cidades mortas.

Hoje caíram tanajuras, não chove - me disse uma velha na fisioterapia; choveu.

Sonhei com a montanha mais alta do mundo.

Só a morte e os vaga-lumes sobreviviam ali.

Quando eu era menina catava içás para minha vó fazer farofa - mas eu não comia.

Depois que a velha falou, uma jovem comentou o mesmo, mas havia nojo em sua voz.

De tudo que Bruno me falou retive a imagem poética do guerreiro que corta o ar com sua espada.

A inutilidade do gesto o torna ainda mais poético.

Em tudo que Gabi me falou havia uma certa sabedoria prática e um amor ao outro que me é estranho.

Impossível não recordar São Francisco de Assis.

Ou certo saber que nos diz que amadurecer é se deixar de lado.

Que gosto terá bunda de tanajura?

No alto dessa montanha do sonho havia um descampado inabitável.

Só a morte e os vaga-lumes se faziam presentes.

Os infortúnios do corpo e da alma são mensageiros de algo.

Só o difícil interessa. Só o amargo desmemoriza.

As coisas que eu gostaria de esquecer nunca serão esquecidas.

Encontro Don Juan onde menos espero.

Em um livro de psicanálise sobre a solidão.

A voz de Lucas invade minha sala com um convite.

As coisas que recordo agora não são da ordem do que pode ser dito.

Alice está longe e está próxima.

Havia nenhuma outra luz na montanha além da dos vaga-lumes.

Lari volta a sangrar. 

Será que as mulheres são ainda mais fascinantes por sangrarem sem morrer?

Thiago de Mello: faz escuro, mas eu sonho.

E sonhar é uma benção.

Ainda quando se perdeu toda uma infância entre pesadelos.

O que eu não terminei de te contar Gabi é que sim houve um tempo em que eu temia a morte.

Temia tanto que evitava dormir, pois todas as noites ela me perseguia em sonhos terríveis.

Isso durou anos - bem mais de uma década.

E nisso vi escoar pelo ralo um tempo precioso da vida.

Depois perdi o medo e, junto com ele, perdi também o amor a esse mundo aqui.

No deserto entendi que os derrotados são sempre os que temem a morte.

Meu avô me repetia algumas coisas todos os dias.

Que ele morreria antes de mim e que eu deveria enterrá-lo e seguir.

Que ele gostaria que isso ocorresse depois dos meus quinze anos.

Que não seria natural ele presenciar minha morte pois isso seria uma perversão da lei natural.

O hálito de álcool não turvava suas palavras.

Nem tudo ocorreu como ele gostaria.

Minha infância terminou quando ele morreu.

Minha solidão é sagrada - e todas as vezes que desacreditei nisso me fodi.

A imagem que retive das falas do Bruno se desdobra à minha frente.

Um guerreiro irado corta o ar com a lâmina afiada de sua espada.

O gesto é ainda mais poético por ser de todo inútil. 

O vaticínio da velha estava errado, choveu.

As bundas das tanajuras sabem à proteína pura.

Aquela montanha mais alta do mundo é o México onde está enterrado a placenta de Alice.

Só a morte e os vaga-lumes parecem ter força de chegar lá outra vez.

Desde o nascimento de Assucena duvido de minha carcaça.

A dor me tirou da estrada. E essa dor se alojou em minha alma.

Sempre fui triste e a alegria sempre me pareceu fútil.

Hoje gostaria de ouvir apenas o silêncio.

A voz da morte. A chuva de tanajuras.

E a melancolica e frágil luminosidade dos vaga-lumes.


nuno g.

Toróró, 21 de fevereiro de 2024.

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