mas o mundo não está para lágrimas
meu coração-criança grita
mas o tempo não está para gritos
tem muita gente morando nas ruas
tem muito silêncio nadando no rio
mataram meu pai tantas vezes
que já pouco importa
meu coração-criança se devora
mas o tempo e o mundo não estão para isso
peço perdão a deus e agradeço
pelo que não fiz
por não ter invertido o sentido dos versos de São Francisco
meu coração-criança abre janelas e portas
deixa entrar a brisa da madrugada
e o som dos grilos que rezam lá fora
meu coração-criança cansou
mas o mundo e o tempo não estão para cansaços
agradeço a deus e suplico perdão
pelo que não fiz
por não ter invertido os versos de São Francisco
mataram meu pai tantas vezes
que já pouco importa
tem muita fome passeando às ruas
tem muita sede dormindo às praças
meu coração-criança corre
atravessa os jardins da Senhora
mergulha nas espinhas oceânicas
em busca de uma nuvem
para fazer de montaria
meu coração-criança brinca de ser coral entre nenúfares
mas o tempo não está para brincadeiras
e o mundo é mais cortante e perigoso que qualquer coral
meu coração-criança dança
atravessa os labirintos da floresta
seguindo o serpentear da cobra coral
em busca de uma nuvem
para fazer de montaria
meu coração-criança não dorme
tem muita miséria nas cidades
tem muita matéria na memória
tem muita cegueira e densidade
meu coração-criança desperta
fora do mundo, longe do tempo
escala árvores como se fosse um gato
e como um gato escapa na imensidão do firmamento
mataram meu pai tantas vezes
que quase me convenceram que isso nada importa
meu coração-criança não esquece
grita chora e se devora
mas o tempo não está para gritos
nem o mundo está para lágrimas
meu coração-criança se alegra
de não ter invertido os versos de São Francisco
corre brinca dança celebra
ainda sabendo que o tempo não está para isso
meu coração-criança adormece
escala árvores como se fosse uma onça
e, onça que é, desaparece na imensidão Azul do firmamento.
nuno g.
Toróró, 02 de janeiro de 2022.
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