São esses os mortos contados no
Ceará até agora.
Sabemos que esse número é menor,
muito menor que o de fato.
Ontem trezentos fascistas
tentaram invadir o congresso nacional.
Ninguém foi preso, ninguém foi
morto, ninguém foi espancado.
É que entre eles não havia
ninguém que fosse alvo.
Anteontem outros fascistas
invadiram hospitais.
A mando do Asno-mor, autoproclamado
tirano desta republiqueta infernal.
Ninguém foi preso, ninguém foi
morto, ninguém foi espancado.
É que entre eles não havia alvo.
Um jovem é espancado na periferia
de São Paulo.
O filho de uma empregada
doméstica cai de uma torre no Recife.
Um estudante negro “suspeito” de
roubar um carro é preso em Salvador:
Ele não sabia dirigir e foi
sequestrado quando voltava da caixa onde foi receber os famigerados seiscentos
reais.
Ninguém vai ser preso, ninguém
vai ser morto, ninguém vai ser espancado.
São só notícias banais: é só a
rotina desta nossa republiqueta infernal.
O ministro da economia faz a
contabilidade: com os anciãos mortos ele zera o déficit da previdência social.
O ministro da justiça faz a
contabilidade: com os mortos da favela ele equaliza a mão de obra de reserva e
diminui o exército de desempregados que poderia levar adiante uma revolução
indesejada.
O ministro da educação desfila
sua ignorância pelas ruas de Brasília: selfies alegóricas para uma triste posteridade.
Os shoppings estão abertos, as
igrejas evangélicas também.
O ministro da saúde escova a farda
e amontoa nos gabinetes mais militares: todos especializados em pandemias e problemas
sanitários.
O Kuarup foi cancelado: os pajés
sabem que os mortos podem esperar – a memória da peste é sábia conselheira.
Com alguma sorte faz sol, dá praia,
e na falta de algo melhor vamos todos desfilar nosso racismo, nossa
truculência, nossa infinita devoção à barbárie.
Perco o sono e passo a noite em
claro pensando: como daqui a uns anos vamos explicar a nossas crianças que
vimos tudo isso acontecer e não fizemos nada.
Com que olhos olharemos nos olhos
de nossos filhos quando os olhos deles nos pedirem que nos expliquem como permitimos
que o mundo que os legamos fosse ainda pior que o mundo que herdamos.
Até Roberto Jeferson, o canalha
ressuscitado, aos quatro ventos brada: anistiamos os militares que nos salvaram
e a eles agora recorremos que outra vez nos salvem.
Abro os jornais e vejo: Monica
Bergamo, Eliane Cantanhêde e Vera Magalhães esbravejando a torto e a direito
como se não houvessem semeado isso.
Silvio Santos, Major Curió, Hermanos
Weintraub e Olavo de Carvalho: todos condecorados com medalhas de mérito e
honrarias.
O ministro do meio ambiente age
rápido: o vírus escancarou a porteira passemos a boiada rapidamente.
Damares, a que vê Jesus em pé de
goiaba e que por caridade adotou uma indígena, se emociona ao ver navios
militares distribuindo a peste na floresta.
Sim, acabou: já basta.
Chega de ler liberais arrependidos
disfarçando que não sabiam de nada.
Chega de fazer de conta que os
fascistas não são necessários aos sonhos neoliberais de nossa republiqueta com
delírios escravocratas.
É domingo. Faz sol. Não vai dar praia.
O meu temor é não ter palavras
quando minha filha crescer e me perguntar:
Papai, você viu tudo isso
acontecer e não fez nada?
14 de junho de 2020.
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