Meu pai por fim morreu.
Mais de trinta anos depois de seu corpo ter sido abatido
como um bicho.
Naquela noite não dormi e saí às quatro e meia da manhã em
busca de cigarros.
Fazia um frio intenso e não havia nada na rua.
Nem cães. Nem vendedores de tacos. Nem vendedoras de flautas
douradas.
Encontrei numa cantina às margens do lago e voltei fazendo
fumaça.
Passos rápidos. Uma viatura de polícia. O carro do lixo.
À minha espera um quarto em paz profunda.
O sono das mulheres depois do milagre.
A paz profunda do corpo de meu pai no bagageiro do avião.
Finalmente.
Mais de trinta anos depois.
Sentei na escadinha onde minha avó estivera sentada sete
dias atrás.
O corpo no bagageiro do avião como anos antes o corpo de
minha mãe.
Belém-Recife-Fortaleza.
Não lembro se havia lua no céu.
Não lembro de sentir frio apesar do tanto de frio que fazia.
Só a paz do sono pós-parto.
O cigarro entre os dedos.
E o silêncio que sempre antecede o amanhecer nos pueblos mexicanos.
A morte sorrindo com a boca atascada de pimenta.
Don Abel Hernández segurando a alça do caixão.
Embarcando o corpo no avião.
Sob o olhar assustado dos policiais do aeroporto.
E o silêncio que antecede o tiro do caçador contra o corpo
da cegonha que traz os bebês.
E eu ali. Parado. Fumando.
Na mesma escada em que minha vó esteve sete dias atrás.
Enterrando meu pai na mesma cova onde estava enterrada minha
mãe.
Esperando o dia amanhecer para escutar a canção que Maria,
recém nascida, entoaria.
O alfabeto escrevendo com éter o destino num último instante
de calmaria.
nuno g.
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