quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A alfabetização do éter

Meu pai por fim morreu.

Mais de trinta anos depois de seu corpo ter sido abatido como um bicho.

 

Naquela noite não dormi e saí às quatro e meia da manhã em busca de cigarros.

Fazia um frio intenso e não havia nada na rua.

Nem cães. Nem vendedores de tacos. Nem vendedoras de flautas douradas.

Encontrei numa cantina às margens do lago e voltei fazendo fumaça.

Passos rápidos. Uma viatura de polícia. O carro do lixo.

À minha espera um quarto em paz profunda.

O sono das mulheres depois do milagre.

 

A paz profunda do corpo de meu pai no bagageiro do avião.

Finalmente.

Mais de trinta anos depois.

Sentei na escadinha onde minha avó estivera sentada sete dias atrás.

O corpo no bagageiro do avião como anos antes o corpo de minha mãe.

Belém-Recife-Fortaleza.

Não lembro se havia lua no céu.

Não lembro de sentir frio apesar do tanto de frio que fazia.

Só a paz do sono pós-parto.

O cigarro entre os dedos.

E o silêncio que sempre antecede o amanhecer nos pueblos mexicanos.  

 

A morte sorrindo com a boca atascada de pimenta.

Don Abel Hernández segurando a alça do caixão.

Embarcando o corpo no avião.

Sob o olhar assustado dos policiais do aeroporto.

E o silêncio que antecede o tiro do caçador contra o corpo da cegonha que traz os bebês.

E eu ali. Parado. Fumando.

Na mesma escada em que minha vó esteve sete dias atrás.

Enterrando meu pai na mesma cova onde estava enterrada minha mãe.

Esperando o dia amanhecer para escutar a canção que Maria, recém nascida, entoaria.

 

O alfabeto escrevendo com éter o destino num último instante de calmaria.


nuno g.

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