quinta-feira, 14 de maio de 2020

nós e as divindades

sonhei com o mar e meu pés deixavam uma trilha de pegadas nas areias. havia vento, muito vento. e havia também uma música suave e bela que acompanhava meus passos. eu estava só e só caminhava entre muitos outros. eu olhava o mar e o mar me olhava com seus olhos de sal. sonhei com um mar muito antigo de águas calmas e nesse sonhava eu caminhava com uma serenidade absurda. havia muitas outras pessoas entre os grãos de areia, mas eu estava só. nada afetava minha paz e o fato de saber que elas estavam mortas a muito tempo me tranquilizava. sonhei com o mar e com as tantas léguas que caminhei para chegar até ele. muitas foram as montanhas que ficaram para trás e extensa a várzea que me levou até ele. sonhei com enormes olhos de sal e mil tentáculos. uma música suave e bela acompanhava meus passos. deixei uma trilha de pegadas nas areias e apesar do vento todo que ventava essas marcas não se apagavam. era inverno, fazia frio, apesar do sol a pino. meus dedos eram longos como os de um velho pianista enfeitiçado e nenhum mal me habitava. sonhei com o mar e com todas as distâncias que nos separam. havia cavalos, havia cabras, havia som de chocalhos. meu corpo estava fendido e trespassado por espinhos alaranjados como os raios do sol. na minha boca havia fogo e era doce o fogo. na minha boca havia memória de luas das guerras antigas. na minha boca havia atrocidades em excesso. o mar, o vento, as areias. eu estava só, apesar de todos os que me rodeavam. não sentia cansaço, apesar de saber o tanto que havia caminhado até chegar ali. as feridas em meus pés denunciavam a existência de um longo e tortuoso passado e os meus cílios cintilantes anunciavam que em breve outra alma encarnaria em meu corpo desabitado. fazia sol, mas era frio. havia música e minha imagem não refletia nas águas. havia cavalos com um só corno e cabras que se perdiam admirando a abóbada celestial. era maio, era o mês dos nossos aniversários e de alguma forma eu pressentia que nas funduras de alguma fossa oceânica nossas alegrias haviam se reencontrado: ainda que por um breve e inusitado instante, ainda que não estivéssemos acordados e que nosso hálito conservasse gotículas microscópicas de éter extraviado. era maio e maio sempre foi o mês de nossos aniversários. sonhei com o mar e com enormes olhos de sal aferrados a mil tentáculos. despertei tarde e me alimentei com sementes como me ensinaram os pássaros. revisei as correspondências e acariciei a onça estendida no sofá. agradeci às divindades aquele sonho e tomei mais um café - o amargo é ainda mais delicado quando sonhamos com o mar e despertamos encharcados de sal. arranquei fora os espinhos alaranjados de sol - o amargo é ainda mais delicado quando sonhamos com cabras, cavalos e chocalhos. a serpente veio, me abraçou e nos acariciamos como se a eternidade houvesse finalmente se instalado entre essas ruínas onde acampamos. despertei, me alimentei de sementes como me ensinaram os pássaros e me recolhi na medula óssea do mês de maio. mês de nossos aniversários. mês em que recordo que tudo passa e só por isso seguimos aqui. tomei um último café - e agradeci uma última vez às divindades a existência insólita do amargo.


nuno g.

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