quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Prece às crianças de Gaza

Crianças de Gaza,

De tão longe lhes escrevo

Que quase duvido que me ouçam

Desertos e oceanos me atravessam

Quando nos olhos de minhas filhas, Marias

Avisto as bombas que caem sobre vossas casas

Como pássaros desnorteados posuídos pelo espírito da morte

Quando no choro de minhas filhas, Marias

Ouço o choro assustado que escapa de suas gargantas

Como súplicas de prisioneiros sob as perversões de um carrasco

Que desconhece qualquer limite às suas fantasias de torturador

Crianças de Gaza,

Lhes negam água

Lhes negam abrigo

Lhes negam comida

Mas não podem lhes negar minhas lágrimas

Não podem lhes negar minhas preces

Não podem lhes negar minha poesia

Oceanos e desertos lhes atravessam

E unem os olhos de minhas filhas, Marias, aos seus olhos

Crianças de Gaza,

Algum dia vocês olharão para trás

E verão o horror a ira e a covardia

Destruindo vossas infâncias

Ouvirão o som das bombas e a pulsação das cicatrizes latejando em seus corpos

Vocês nunca deixarão de ser o que são

Nunca poderão esquecer o que estão vivendo agora

Nem o que viveram vossos pais e vossos avós

Crianças de Gaza - Alláh não as abandonará

Nele encontrarão seus indecifráveis oráculos

E os misteriosos labirintos da existência

Nele encontrarão a pedra firme onde ancorar seus íntimos desesperos

Crianças de Gaza,

Sórdidos homens de corações impuros

Mergulham suas infâncias na dor e na amargura

Mas suas almas permanecerão ilesas e intocadas

Na abundância em que crescem minhas filhas, Marias

Saltam como rãs no pântano

As misérias de suas existências

Crianças de Gaza,

Seus pais com armas, fé e angústia descomunal

Tentam lhes devolver a Terra Prometida

Crianças de Gaza,

Suas mães se fazem água para que não morram de sede

Suas mães se fazem pão para que não morram de fome

Suas mães se fazem esperança para que não morram de desgosto

Suas mães se fazem azeite de oliva para que não desconheçam a doçura

Suas mães se fazem tecidos para vestir vosso supremo sofrimento

Crianças de Gaza,

O mundo assiste a tudo e não faz nada

Como um estúpido espectador ante um espetáculo de entretenimento

Somente os seus se fazem escudos para que as bombas não caiam sobre vossas pequeninas cabeças

Crianças de Gaza,

No sono sereno de minhas filhas, Marias

Avisto os destroços de vossas infâncias

Ouço a indiferença absurda do mundo ante o vosso supremo sofrimento 

Crianças de Gaza,

A poesia nada pode ante a realidade e a crueldade e o absurdo do mundo

Crianças de Gaza,

Vosso clamor é o clamor de todos os oprimidos da terra

Alláh nunca as abandonou

Alláh nunca as abandonará

Nas ruínas dos hospitais destruídos pelas bombas

Nas ruínas das escolas destruídas pelas bombas

Nas ruínas dos versos dos grandes poetas palestinos

Nas ruínas das místicas árabes e do sufismo

Nas águas dos desertos e na áridez dos oceanos

Vocês encontrarão a matéria-prima e as reminiscências da Terra Prometida

Vocês encontraram o alimento e o abrigo que lhes negam agora

Crianças palestinas

Lhes negam os peixes do mar

Lhes negam o pão da terra

Lhes negam uma casa onde dormir, sonhar e orar

Lhes negam o sal que dá sabor à existência

Crianças de Gaza,

Mas não podem lhes negar uma língua, uma história e uma tradição poética

Não podem lhes negar a fé nem a dor que sustenta toda fé

E vossa dor ecoa nos olhos serenos de minhas filhas, Marias

Palestinas como todas as Marias do mundo

Palestinas como a Maria que amamentou aquele em quem o Ocidente enxergou o próprio Deus

Crianças de Gaza,

Sem saber se essas palavras cruzarão os desertos e oceanos que nos separam

Impotente ante a vossa dor e o vosso sofrimento

Só me resta orar e crer

Que o amor e a misericórdia de Alláh

Hão de vencer a ira, a covardia e a maldade que lhes destroça a infância

Só me resta acreditar

Que algum dia essas pedras que hoje lhes servem de armas

Serão a matéria-prima de sua futura Terra Prometida

E os brinquedos da infância de seus filhos, de seus netos e bisnetos

Só me resta rezar para que algum dia possam brincar de roda

No oásis que lhes concederá o destino

Crianças de Gaza,

Vocês serão maiores e melhores algum dia

Pois lhes tocou não ter outra infância senão a da guerra e dos destroços

E saber da mutilação e da perda antes de conhecer o acolhimento e a alegria

Crianças de Gaza,

A paz sem justiça é qualquer coisa menos paz

Que a poesia seja vossa prece

E que a memória da indiferença do mundo os fortaleça

Crianças de Gaza,

Do outro lado do oceano

Do outro lado do deserto

Alláh lhes olha

Alláh lhes alimenta

Alláh sacia vossas sedes

Algum dia vocês serão maiores e melhores 

Pois nunca esquecerão o poder destrutivo do ódio e das bombas

Pois nunca esquecerão o silêncio ensurdecedor da indiferença do mundo

Pois nunca esquecerão o choro e ranger de dentes que soa no campo de batalha

Crianças de Gaza,

Recebam minhas lágrimas e estes humildes versos

Que essa injustiça absurda e esse sofrimento supremo

Que esmaga vossas infâncias com a voracidade de um abutre maligno ante uma presa indefesa

As convertam em guerreiras da Luz e da Sabedoria

E as tornem capazes de vencer as sombras da ignorância

Que não poupam infâncias, oceanos e desertos...


nuno g.

toróró, 18/10/23

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