sábado, 28 de outubro de 2023

Dádiva.

Adélia sabe dizer das coisas de deus - carrego essa força comigo.
Escrevo com Assucena no colo.
Escrevo com Alice no colo.
A mulher que traz a razão no corpo agora também traz leite em si.
Hermenegildo passa com o olhar perdido na outra margem do rio.
Onde a montanha queima criminosamente.
As cobras, os pássaros, os tatus, os lagartos encontram a morte.
Alguns conseguem escapar e caem nos telhados das casas de São Félix.
A estiagem segue. Rego as plantas antes de escrever.
O Senhor do Fogo me exige ser todo justiça.
O Senhor da Pedra me exige ser todo firmeza.
A mulher que traz a razão no corpo desayuna uma canja de galinha.  
Adélia sabe dizer coisas que eu não sei - carrego esse amor comigo.
Cleonice passa na estrada falando de sua roça.
Judite passa na estrada falando de sua égua.
As duas pisam no mesmo chão onde pisara Hermenegildo.
Sylvia Plath escreveu sobre o caçador de mamangavas e eu chorei depois que Alice partiu.
Ela escutou o conto com atenção e em seguida foi brincar junto ao fogo.
Assucena teve um dia difícil.
Muitas são as agruras do encarnar.
Estar aqui exige muito.
Leite, razão, colo, fé.
Penso em Jó todos os dias.
E quando o Cavaleiro passa cantando meus nervos bailam.
E quando o Caçador passa sua flecha me atravessa.
E quando o Anjo Azul se deixa avistar tremo.
Já é sábado, finados se aproxima.
Como um caracol que anda devagarzinho.
Tenho que ir dar voltas de rua hoje.
Comprar uma vela pra minha mãe da floresta que está adoecida.
Comprar pão, broa de milho e colher flores pra mulher que tem a razão e o leite no corpo.
Papai, passou rápido o tempo, quando eu estava aí ela tinha dez dias, agora já vai fazer um mês.
Passa rápido o tempo.
Quem sabe das coisas de deus saberá das coisas de tempo.
Em Minas existe uma cidade chamada Divinópolis.
Nessa cidade existe uma rua chamada Ceará.
É lá que vive Adélia - a poeta que me ensinou a ver com olhos livres.
Tenho que ir à rua. Minha mãe da floresta está com água nos pulmões.
Preciso lhe acender uma vela em agradecimento.
Nós sim sabemos que a morada da vida é no coração da morte.

nuno g.
Toróró, 28 de outubro de 2023.

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