sábado, 21 de outubro de 2017

caiçara

Papai, posso molhar o pé?
Claro que sim filha.
Meus tios pescaram aqui.
Eu me banhei aqui.
E quando existia cheia.
As águas dessa lagoa invadiam o cemitério.
E saciavam a sede dos nossos mortos.
Papai, podemos atravessar a ponte?
Claro que sim filha.
Esses que estão aí sentados.
Jogaram bola comigo.
Brincamos de polícia e bandido.
E curtimos as matinês do lua cheia.
Papai, eu quero fazer cocô.
Duas das filhas de Hamurabi esperando clientes à entrada do bar.
Obrigado.
Tia Neuza bebendo água de coco.
Cumprimentando alguns conhecidos de outrora.
Papai, foi nesse mesmo banheiro que eu fiz cocô ano passado né?
Foi sim filha.
Naquele dia que eu e a Débora achamos uns sapinhos...
Uma senhora sentada no banco do outro lado nos olhava.
Entre o encantamento e o inquisitorial.
Como há muito se habituaram a me olhar os daqui.
Papai, posso ficar brincando descalça?
Claro que sim filha.
A senhora seguiu nos olhando.
A lua nasceu.
Vimos o barco que aos fins de semana passeia as pessoas.
Embala seus sonhos na lâmina dessa lagoa.
Singra essas águas desde sempre mescladas às cinzas de nossos mortos.
Papai, entrou um espinho no meu pé.
Senta aqui que eu tiro.
A mulher segue nos olhando.
O pai dela levou um tiro na loja de meu avô.
Dizem que foi acidental.
Aqui tudo é assim: dizem...
O homem que atirou se chamava Ivan.
Foi a primeira vez que ouvi esse nome.
Só anos depois leria os Irmãos Karamázov.
Pronto, o espinho já saiu.
Papai ainda tá doendo e dói muito.
Já vai passar meu amor.
Me dá cavalinho papai?
Claro filha.
Obrigada papai.
De nada meu amor, só me prometa que quando passar seguirá andando descalça...

nuno g.

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