Escreveu o próprio testamento e foi viajar.
Deixou o verde do mar entranhar mais dentro do que todas as
vezes.
Tão dentro que parecia fora.
Reencontrou uma amiga depois de anos.
Não disse que ela estava igual.
Não disse que ela estava linda.
Não disse nada além de um hola.
Ela estava de passagem.
Ele era demasiado tímido.
Rasgaram com as mãos uma folha seca de cajueiro:
em mil pedaços.
Armaram sem pressa o quebra-cabeças:
enquanto o chá cozinhava
enquanto se acendiam as velas.
Apesar de não ter dito pensou:
¡hermosa!
Estamos todos de passagem.
Nos desfazendo do que não nos pertence.
Não foi a única amiga que reencontrou.
Houve outra.
Que dividiu tantinho da água do seu mar com o rio dele.
E que com a ponta do dedo untou com sal sua língua.
Houve outra.
Que o ensinou sobre como abraçar quando o abraço pode ser o
último.
Sobre como abraçar quem há demasiado tempo não se abraçava.
Houve outra que o chamou à calçada
e lhe segredou umas faísquinhas de estrelas provavelmente já
mortas.
O tempo não alcançou a chegança das faísquinhas das por nascer.
O tempo não alcançou a chegança das faísquinhas das por nascer.
Houve outra que lhe chamou amigo e lhe disse:
Estamos jovens lindos
e felizes.
Houve outra que também estava apressada e se dizia cansada.
Deixou em suas mãos seu filho e foi estirar o espinhaço.
O testamento adquiriu a forma de romance.
Toda forma expressa diretamente contradições insolúveis do
cotidiano.
Todo testamento é uma maneira arbitrária de dar cabo das
muriçocas infernais.
Se existir outra coisa
depois
já se tratará de outra coisa.
já se tratará de outra coisa.
Quem assim o disse trazia olhos e aura de gente renascida.
Uma viagem é só uma viagem e nada mais.
Uma maneira de ser verde.
Uma maneira de ser sal.
Uma maneira de – sem deixar de ser rude – deixar-se afagar.
Uma maneira de – sem deixar de ser dor – tear com precisão e
delicadeza a teia da beleza.
Uma maneira de esquecer todas as vezes que a morte lhe
alcançou o calcanhar.
Uma maneira de ensinar Maria
a não esquecer de regar as flores
nascidas no mausoléu
(outrora revestido de azulejos azuis)
onde repousam nossos ancestrais.
Os fantasmas devoram maturis em seus aniversários.
Eles sim sabem que todo reencontro é só uma forma da
despedida.
E que é necessário celebrar toda e qualquer despedida.
nuno g.
Nuno.
ResponderExcluirEu amei muito isso que ta escrito ai!
Gabi
Que venham os encontros e as despedidas à sombra do cajueiro....
ResponderExcluirAncestral mesmo
ResponderExcluir