quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A casa de meu bisavô.

A casa continua igual.
Parada no mesmo lugar.
Olhando a mesma igreja.
Às vezes parece que corre nela um matemático perdido.
Ou uma assistente social procurando a cura pra rara doença do filho.
A escada continua quase a mesma.
Só modernizaram os três primeiros degraus para enganar os desavisados.
Lá em cima, a sétima da sétima geração de morcegos.
Papai, os morcegos não dormem de dia?
Dormem sim filha, foram nossos ruídos que os despertaram.
O quintal, o sol, a rede.
Tia Neuza extraindo seu sonho e sua metafísica da solidão absoluta.
A calçada, as cadeiras, a pracinha.
O relógio da coluna segue quebrado.
Sim filha, foi nessa pracinha que eu aprendi a andar de bicicleta.
Na bicicleta que o vovô Nuno lhe deu?
Sim filha, na bicicleta que o vovô Nuno me deu antes que o matassem.
O corredor ficou menor.
Os quartos ficaram menores.
A garagem onde eu passava horas com o tio joãozito ficou menor.
Ou será que fui eu que cresci?
Papai, você sonhou com o quê?
Sonhei com o tio joãozito, ele estava feliz, banhando-se no jaguaribe.
Nosso rio secou.
Nossas várzeas viraram criatórios de camarões.
Nossas árvores viraram lenha para fornos de cerâmica.
Nosso barro virou telha, tijolo e cédulas de cem reais.
A casa segue a mesma.
No mesmo lugar.
Exposta ao olhar da igreja.
Às vezes parece que vemos rosinha, a beata, acendendo alguma vela.
Outras vezes é Antônio, o maçom, proferindo alguma heresia.
A casa é feita de cera.
Não há nela artefato que não tenha em sua confecção algo de carnaúba.
Eu também sou feito de cera.
Eu também cheiro à carnaúba.
Papai, lembra que quando eu vi o tijolo de cera pensei que era rapadura?
Lembro.
A praça mudou.
A igreja mudou.
Só a casa permanece a mesma.
E se Maria a ama tanto.
É por também ser feita dessa cera que nem o fogo das tragédias derrete...

nuno g.

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