Estive por séculos subindo e descendo aquela rua estreita. Entre o calor e as flores minhas esperanças de reencontrar meu avô e minha infância tornavam sempre a se renovar. A voz do tio Edson no púlpito da matriz pedindo a deus que me desse força para entender o que não poderia ser entendido. As lágrimas sem-fim de minha avó escorrendo pelos meus cabelos e o cântico perturbador e exausto das onças agônicas me acompanhando, me protegendo, me forçando a empunhar outra vez a pá de areia e enterrar entes queridos. Naquele vai-e-vem sem-sentido fui entendendo que felicidade e paz eram palavras tão inúteis quanto as palavras das aulas de catecismo. Nada acontecia naquele livro de memórias fragmentadas onde estive aprisionado por séculos. As fúrias ressuscitadas, o gavião real e o jaguar encantado apenas me exigiam paciência e rigor. Severas eram suas maneiras de ensinar e pouco-a-pouco fui entendendo como se gestam distâncias, como opera a violência do silêncio e como em sementes já habitam árvores. Raras vezes me ausentei de refazer a diário aquele caminho: o que entre fantasmas vive estranha em tudo essa displicência e arbitrariedade que em todos os lados se apresenta como vida e cotidiano. Na guerra em que cresci a febre, os calafrios e a insônia eram irmãos gêmeos e o lugar mais aprazível era o sótão onde, por sorte, conheci esse morcego que me apascenta o inviolável desejo de nunca mais estar aqui outra vez.
nuno g.
Toróró, 23 de novembro de 2024
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