segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O tempo, a serpente, o labirinto e o palácio do beija-flor

Alzira beijou os pés da terra e os pássaros alaranjados sobrevoaram o rio.

Estive outra vez entre as ruas da infância.

E ouvi os cânticos dos escravos e seus atabaques.

Alzira ergueu seu santuário - sua escada para o Nada.

Além do silêncio se gesta outra forma de vida.

Alzira sorriu quando lhe falaram de um mundo em desintegração.

Nós que aqui estamos viemos de longe.

Nós que aqui estamos sobrevivemos muitas vezes à dissolução.

A mulher que traz no corpo a razão despertou mais cedo.

Costurou novos cílios, sobrancelhas e fabricou unhas coloridas.

Centauros cruzaram as águas.

Elipses, curvas acentuadas e areias movediças.

A Sussuarana e a lua - Rebeca acaricia os cabelos como se já fosse noite e plenitude.

Corre pelas várzeas um jaguar alucinado.

A menina dos olhos de cristal em seu lombo.

A Sussuarana e a estrela - todos os sonhos esquecidos estremecendo ao amanhecer.

Nossos mais velhos despertando ainda mais velhos.

E os que vêm chegando acendendo centelhas e faíscas.

Água limpa às quartinhas e sol.

Unicórnios - certa insistência sem angústia.

A dor que chega. A dor que vai. A dor que sempre esteve aqui.

A mulher que traz no corpo a razão caminha entre o Nada e o Nada.

Ano passado todos morremos - Alzira sonha sonhos dos quais não guardará qualquer recordação.

A estrela e seus afetos - o rio, a pedra, o musgo e a solidão do Velho.

Chegam as maritacas, as garças e as lembranças das feiticeiras da ilha.

Alzira me beijou a testa - sua benção!

Hermenegildo acenou de longe - os gatos seguiram a algazarra.

Ainda é quase noite e já se avista a gruta onde a serpente encarnou.

Vestes brancas, água de alfazema, velas e milho branco.

Água limpa às quartinhas - Alzira beijou os calcanhares da porteira.

A mulher que traz a razão no corpo canta.

O passado é uma roupa que não nos serve mais.

Senhora das águas doces - sua benção!

Senhora da lama do mangue - sua benção!

Senhora das tempestades - sua benção!

Senhor das cores celestiais - sua benção!

Cavaleiro da lança esmeralda - sua benção!

Toda ferida tem um mapa dentro.

Nazaré com seu lenço apara as lágrimas.

Senhora do mar - sua benção!

Senhor das matas sombrias - sua benção!

Ouço outra vez os cânticos iluminados dos escravos.

Seus atabaques, suas promessas, suas sutis maneiras de vencer a morte.

Caleidoscópio de ressentidas estrelas - a manhã já mergulha em seu abismo.

E nós desayunamos as flores do aniversário.


nuno g.

Toróró, 25 de setembro de 2023.

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