para Maria Alice y Maria Assucena,
O hoje é apenas um furo no futuro
Por onde o passado começa a jorrar
E eu aqui isolado onde nada é perdoado
Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar
Raul Seixas / Marcelo Nova
No porto de Aracati não se embarcam mais escravos - e foi subindo o vale.
Das cabeceiras em Fortim à antiga capital dos sertões.
Gravada em couro a mensagem cravejada com a estrela de sal do Pontal de Maceió.
E no caminho maçons, tapuias, onças, feiticeiros, clérigos, cabras, pedras
e a aprazível memória dos futuros que não se fizeram história.
Tambores para a Virgem da Conceição, comerciantes, pirotécnicos, pistoleiros e agricultores.
Esta estrada conhecemos na palma da mão - a percorremos desde sempre.
E sempre retornamos a ela como se fosse uma última vez.
E sempre olhamos abismados nosso reflexo nas águas desse rio.
E sempre tornamos a ouvir o canto dessas onças que nos guiam.
Desse jaguar que nos protege.
Desse gavião que vai iluminando nossas encruzilhadas.
Como um candeeiro arcaico - salve as almas!
Salve os preto-velhos e as preta-velhas que caminharam neste tabuleiro de maturis!
No caminho kardecistas, exploradores da cera das carnaúbas e esse rio.
E esse vento que arrepia e desperta.
E essas estrelas mortas no horizonte.
E as centenas de promessas nunca cumpridas.
E a memória de um touro indomável percorrendo as vazantes.
Onde nascem os jerimuns, o milho, o feijão e a batata doce.
Onde Antonio sentava para elaborar seu moto perpétuo impossível.
Onde Raimundo sonhava com um mundo de justiça e humildade.
Onde Edberto evocava a verdade impossível dos que já fizeram a passagem.
Terra onde caíram minhas sementes.
Chão onde a Serpente se fez vista aos olhos da carne.
Nuvem à espera de raios e trovões.
Até aqui cheguei - amanhã é só a lua radiante no céu.
E esse alaranjado que reúne em si todos os fogos do mundo.
O que nos espreita segue aqui - seu silêncio também.
Aquele vento. Aquele rio. Aquele som da mão de pilão caindo sobre a farinha.
Esmagando - madeira contra madeira - a carne seca à sombra.
Os olhos de minha vó - só ternura e espera.
A benção de tia Neuza atravessando todas as segunda-feiras.
O Inquebrantável. O Inconciliável. O Absurdo Imponderável.
Do outro lado da serra uma chuva fina e o som de uma estrela nascendo.
O presente é só um eco do Inalcançável.
Gravitam agora miríades de futuros Inapeláveis.
As onças seguem cantando.
Os gaviões seguem aqui.
A serpente não nos abandona o destino de sonhadores.
A serra do feiticeiro seguirá sendo o que sempre foi.
Apesar dos agrotóxicos, das empresas exportadoras de frutas, da carnicicultura.
Dos meus dois filhos que nunca quiseram estar aqui.
E desse permanente se saber cheio de Nada por dentro.
Os dias de exaustão vão ficando pra trás.
E cada vez mais entendemos que o Nada tem muitos mundos dentro.
Do outro lado da serra fica a província do Siará Pequeno.
Poucas notícias chegam de lá.
Às vezes chove sangue dos tapuias mortos na guerra dos bárbaros.
Às vezes ouvimos tambores de uma festa eterna.
Mas nunca sabemos exatamente como é a vida ali.
No porto de Aracati não se embarcam mais escravos - estranhas xilogravuras de Tempo.
Grãos de mais-realidade no deserto onírico.
E a vaga lembrança de uma cabeça de touro enterrada
sob a Igreja da Virgem da Conceição
na vila do Icó.
Águas do Araibu, cavalo castanho chamado Tempestade.
Hermenegildo, Cleonice, Judite e outros fantasmas em procissão à Eternidade.
E a vaga lembrança de uma...
nuno g.
Toróró, 18/09/23.
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